quinta-feira, 12 de julho de 2012

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 18) FORMOSO 2000

Na pequena Formoso, lugarejo que, palmilhando o futuro, avançava sempre como um caranguejo, retrocedendo a cada passo, o sol brilhava a pino no céu azul, ao pé da serra. O cemitério acanhado mal continha a dezena de pessoas, que devotadamente acompanhavam o sepultamento. Glória, apoiada no braço de Rodolfo, mal prestava atenção às palavras do pároco encarregado do serviço religioso. Era a segunda vez que visitava aquele local. A primeira quatro anos atrás, quando Sérgio morrera, subitamente. Agora lá estava com os amigos, para a última despedida a Leo. Olhando para a copa da velha árvore, cuja sombra se projetava na sepultura aberta na terra avermelhada, relembrava as imagens mais fortes de Leo retidas em seu coração. O amigo que em todas as oportunidades fizera de sua própria vida um instrumento para aliviar o sofrimento alheio. Infelizmente na melhor fase de sua vida convivera muito pouco com o amigo. Separaram-se logo após a festa de fim de ano de 1968. Em seguida tinha iniciado sua vida em Paris, e não soubera mais dele. Nos anos da ditadura tinha se apresentado como o amigo fiel e protetor, amparando Lívia e Sérgio. Mesmo após o reencontro com Sérgio, Leo se mantivera afastado de seus antigos colegas de universidade. Depois vieram os anos de trabalho na Somália. Onde construira uma vida de abnegação, prestando serviços aos que mais necessitavam. Nunca constituira familia. Seu companheiro fiel durante anos tinha sido Sérgio. Este, ao morrer em Campo Grande há quatro anos atrás, deixara recomendações para que fosse enterrado junto a Leo, em Formoso. Porque era o afeto que mais prezara em toda a sua vida. Agora, lado a lado, os amigos finalmente se reuniam pela última vez. Os olhos marejados de Glória repassaram os presentes. Lívia, Tiago e a filha, enfim reunidos, e procurando viver felizes. Infinitamente gratos a Leo. Analucia e Dora, ainda mantendo uma relação estável, mantinham a pousada em Formoso, explorando o ecoturismo. Em silêncio prestavam a última homenagem ao irmão que, apesar da pouca convivência, tinham aprendido a amar cada vez mais., Roodolfo apertava-lhe a mão carinhosamente, transmitindo-lhe conforto e segurança. De todos era quem mais de perto tinha acompanhado a vida de Leo fora do Brasil, principalmente a fase da Somália. Aprendera a respeitar profundamente as convicções do amigo. Também a resgatar a história de seus passos, para construir um exemplo de vida e dedicação. Digno de ser transmitido às futuras gerações. E ela, Glória. Com uma história de vida também tumultuada. Mas com a oportunidade de ter sido beneficiada com uma experiência profissional rica em sentimentos, que lhe permitiram conhecer melhor o comportamento humano. Sua extrema dedicação ao jovem Gerard. O convívio com Armand e Amélie. Sua luta para proporcionar à filha de seu coração uma vida feliz, com dignidade e muito amor. Agora, nos últimos anos, compartilhando sua vida com Rodolfo, que a despertara para o recomeço de novas emoções. E que lhe abrira mais ainda o reconhecimento dos caminhos trilhados por Leo. Este entrara em sua vida como o jovem tímido e introspectivo, de sexualidade mal definida. Que acabara sendo despertada finalmente por ela. E também por ela mesmo sepultada na noite marcante do final do ano de 1968, quando sucumbira desatinada e instintivamente ao descontrole de suas emoções. Com o passar dos anos aprendera a se perdoar. As conseqüências daqueles momentos de irrefletido abandono, subjugada pelo ardor inconseqüente de Sérgio, causaram a separação dos jovens amigos, que passaram a trilhar caminhos diametralmente opostos. O altruísmo de Leo fez com que o fio do destino complacentemente realinhavasse as vidas de todos eles, reunindo-os apesar de todos os desencontros. Mantendo-os amparados pela figura tutelar do amigo, sempre presente nos momentos de maior necessidade. Por trás de Glória, o sol projetava a sombra dos amigos presentes, agora unidos e finalmente felizes. Essa sombra única se prolongava cobrindo suavemente a singela sepultura... Reunindo em uma só imagem, pelo milagre da sombra, mais uma vez, aqueles que aprenderam que os caminhos da vida somente tem sentido se forem percorridos em companhia de quem se ama.-

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 17) SÃO PAULO 1996

Ele atravessou o portão de embarque com segurança e determinação. Até com certo alívio. Nem mesmo a bengala, que usava para compensar a visão limitada, o atrapalhava. O terno bem assentado e os sapatos impecavelmente engraxados demonstravam ainda uma situação econômica confortável. Também vaidade e até um ar de arrrogância. O aeroporto de Congonhas, acanhado e insuficiente para a demanda dos vôos domésticos, naquela manhã de outubro, mostrava todo o desconforto causado pelas longas filas e salas de embarque com lotação acima da prevista. Chegar ao aeroporto já se constituíra em um sacrifício, decorrente do pesado tráfico da cidade de São Paulo. Nunca a expressão selva de pedra fora tão bem aplicada. As ruas simplesmente entupidas. As rotas de acesso com um fluxo lento demais. A combustão dos motores poluía massacrantemente a manhã luminosa. Aquele vôo tinha sido uma solução inesperada para a urgência que o acometia. Voltar a Campo Grande não o agradava. Um cortejo de memórias teimava em resgatar o passado, que volta e meia retornava, cobrando os juros de uma dívida sem resgate. Espectros o assediavam cada vez mais frequentemente. Uma sucessão de rostos contorcidos perturbava-o sem piedade, trazendo-lhe noites de insônia. Ele,que nunca soubera o significado dessas palavras - piedade e insônia – agora passava noites sem dormir. Pesadelos e fantasmas que ele mesmo tinha criado. Todos os detalhes de sua vida pregressa como caçador de homens e torturador passavam e repassavam em sua mente. Com destaque para todos os requintes de crueldade e perversões, nos quais sempre fora mestre. Agora, quando a noite caía, começava seu maior pesadelo. Continuar vivo. Uma pontada aguda na cabeça trouxe-o à realidade. Continuar vivo significava conviver com a dor e a limitação visual, que há anos o acometia. Tivera sua carreira militar e política interrompida pela enfermidade. Que o colocava sempre em uma condição de vulnerabilidade e insegurança. A viagem aos Estados Unidos e o tratamento lá desenvolvido tinham sido quase um fracasso. Embora tivesse conseguido conter o curso da enfermidade, e assim evitado a cegueira total, ficara ainda com as dores e uma acentuada diminuição na acuidade visual. Entretanto, acima de tudo, uma absoluta sensação de ter sido ludibriado. O que lhe aumentava mais ainda o rancor e o ódio que lhe consumiam as entranhas. Não conseguia esquecer que sua condição atual se deveu ao tempo perdido na perseguição a Sérgio e Leo. Os dois ainda continuavam vivos, e o assombravam. Tomando conta de todos os seus dias. Sempre presentes em todas as situações, como que para recordá-lo permanentemente de sua humilhante derrota. Ele, um dos mais persistentes caçadores dos guerilheiros do Araguaia, ter sido passado para trás por um renegado que mal se aguentava sobre as pernas e um médico almofadinha do interior. Depois de quase tê-los apanhado, quando se refugiaram na pousada da irmã de Leo, perdera a pista dos fugitivos no aeroporto do Galeão, onde supostamente haviam embarcado para Lisboa. Supostamente, porque nunca as autoridades portuguesas confirmaram a presença de qualquer brasileiro que se assemelhasse à descrição física de leo e Sérgio, enviadas pela polícia do exército. Mesmo após sua volta dos Estados Unidos, e após ter sido reformado, abandonando sua privilegiada posição no exército, em função de suas condições físicas, Alberto jamais deixara de procurar os dois fugitivos. Obsessivamente. Tinha pessoalmente vasculhado os arquivos da polícia portuguesa, verificando a entrada de brasileiros no país. Sem qualquer resultado. No Brasil, não havia se deparado em todos os últimos anos com qualquer pista. Era como se os dois tivessem sido tragados pela terra. Depois promulgaram a Lei da Anistia. E com ela Alberto perdeu toda e qualquer possibilidade de, oficialmente, lavar sua honra. Até que, no último fim de semana os jornais trouxeram uma nota de rodapé na coluna policial. Em Campo Grande o encontro do corpo de provavelmente um dos sobreviventes da guerrilha do Araguaia, despertaram sua atenção. Sérgio fora encontrado morto, dentro de seu Vectra prata. Sem causa aparente. Sem vestígios de violência. Sobre os joelhos uma pasta de documentos semi-aberta. O conteúdo intrigante, reminiscências de uma época infeliz, de repressão e brutalidade. Fotos antigas, algumas da época da guerrilha do Araguaia, uma carta endereçada ao seu herdeiro legal, em caso de sua morte, documentos e cem mil dólares americanos. Em letras de câmbio beneficiando um tal Leopoldo Augusto dos Anjos. Um passaporte presumivelmente falso de procedência chilena. Também uma carta endereçada a Leo. Estava voltando. Talvez agora pudesse definitivamente acertar suas contas com Leo e Sérgio. Estava disposto a ir às ùltimas consequências. Instintivamente pensou em sua pistola automática, despachada em sua bagagem. O doce sabor da vingança. Afinal a vitória, após todos os anos de frustração e procura. A vingança é um prato que se come frio, diz o ditado. E certamente ele iria degustá-la com infinito prazer. E havia também a possibilidade das fotos comprometedoras, que poderiam ainda trazer-lhe graves problemas. As mesmas fotos que o incriminavam quando recebeu a maleta de dólares em Campo Grande, na noite do resgate de Sérgio. O Fokker 100 da TAM arrancou na pista sem atraso, às 08h26, e decolou como se carregasse o mundo na fuselagem. Na realidade eram noventa e seis passageiros a bordo. A cidade de São Paulo abaixo, distanciando-se aos poucos, mostrava sua floresta de edifícios, cinzentos e irregulares. Sem definição de horizontes, apenas o casario interminável. Serpentes de veículos cruzavam as ruas tornando o deslocamento urbano insuportável nas horas de maior fluxo. Fechando os olhos, deixou-se embalar pelas lembranças,tentando relaxar. Não conseguiu. Nem iria mais. Sem qualquer aviso prévio, em segundos o avião perdeu altura, inclinou-se para a direita e resvalou na cobertura de um prédio de três andares. Quase não ouviu o clamor dos passageiros. Não houve tempo. Batendo no telhado de outro prédio, já em chamas o avião se espatifou sobre oito casas na rua Luis Orsini de Castro, explodindo e incendiando catorze carros estacionados. O trabalho de resgate dos corpos durou sete horas, em meio a um cheiro insuportável de querosene, e uma poeira preta que dificultava a respiração. O fogo controlado deixava destroços, como se uma bomba tivesse caído sobre o quarteirão. Os vizinhos consternados se uniam voluntariamente aos bombeiros, policiais e paramédicos, na inútil procura por sobreviventes. Mais tarde a contagem de vítimas fatais chegaria a 99. A maior parte dos corpos, desfigurados e carbonizados, em sacos plásticos,foram empilhados no asfalto.Compondo uma cena de horror.

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 16) CAMPO GRANDE 1996

Sérgio levantou-se bem disposto naquela manhã. Havia muito tempo que Chico Alemão não mais aparecia em seu sono atormentado. Nesta noite regressara. Mas em condições muito diferentes. Não mais ferido e agonizante. Mas como o vira pela primeira vez, sorridente e com um vigoroso aperto de mão. Fora uma visão rápida e reconfortante. Tomara o café lendo o jornal, procurando nas notícias da manhã algo que o auxiliasse na tarefa que se impusera a fazer naquele dia. Algo que já deveria ter feito há tempos. Mas que fora deixando sem se aperceber que os dias correm mais rapidamente do que imaginamos. Apanhou uma pasta de documentos e sentou-se no sofá da sala. Eram o testemunho mudo de um passado com encontros e desencontros. Dor, resgate e honra recuperada. Fotos antigas e mais recentes recordavam-lhe os poucos amigos e momentos inesquecíveis. As diferentes fases de sua vida ali estavam representadas. Os amigos da universidade, companheiros da guerrilha, Leo e ele fotografados várias vezes na pousada de Analucia, no Chile e depois na África, quando serviram no Corpo de Paz da Organização das Nações Unidas. Deixou-se ficar algum tempo rememorando aqueles dias tão conturbados. Não fosse o apoio e a companhia de Leo, certamente não teria sobrevivido a todas aquelas situações. Além do apoio financeiro, Leo havia dedicado boa parte de sua vida a ampará-lo e a conduzí-lo para dias melhores. Agora deveria compensar toda a dedicação do amigo. Ao menos o investimento econômico. Já que o moral não teria nunca como retribuir. Acometido por repentina emoção, lembrou-se daquele fim de tarde especial na cafeteria do Cerro Santa Lúcia quando Lívia finalmente se reuniu a ele e a Leo. Sorrisos, lágrimas de alívio e confidências regadas a um bom vinho chileno estenderam-se noite a dentro. Planos para um futuro melhor. Após algumas semanas Lívia voou para Paris. Ao encontro de Glória, que tinha encontrado pistas que levariam ao paradeiro de Tiago. Em breve todos estariam reunidos, iniciando uma fase mais feliz de suas vidas. Já os dois amigos nada tinham programado para o futuro, que não fosse a recuperação total de Sérgio. Leo aproveitava esses dias de tranquilidade para ler ou pintar. A arquitetura típica do centro histórico de Santiago era uma motivação imperdível para o pintor de casarios. Não havia a menor oportunidade de retornar ao Brasil nos próximos anos. Também havia Alberto, provavelmente para executar qualquer vingança bem elaborada. As perspectivas de permanecerem em Santiago não eram atraentes. O regime totalitário implantado pelo golpe militar que levara ao poder o general Augusto Pinochet, cedo ou tarde iria se interessar por exilados políticos, principalmente brasileiros. Decidiram que também deveriam partir. Apenas não sabiam para onde. Talvez Paris. Mas também sem muito empenho. Talvez não estivessem preparados ainda para reencontrar o grupo de amigos dos tempos da universidade. Muito havia acontecido com todos, e as cicatrizes estavam ainda recentes. Todos necessitavam de um período de recuperação. A situação econômica de Leo era ainda muito confortável, o que permitia uma refletida liberdade de opções. Terminaram por escolher a Suiça, onde em Genève,Leo tinha contactos confiáveis. Também haveria maiores facilidades em gerenciar os dividendos de seu patrimônio. Os primeiros dias no novo exílio foram de reconhecimento. Comportaram-se como turistas descompromissados. Alugaram um pequeno apartamento próximo ao lago. Todas as manhãs exercitavam-se fazendo longas caminhadas pelo Promenade de Lac, usufruindo da dinâmica e magnífica presença do Jet d’Eau, símbolo vivo da cidade. Um jato de água projetando-se vertiginosamente para os céus, para cair em seguida formando uma cortina transparente de gotículas sobre a superfície calma do lago. Mais tarde sentavam-se nos bancos do Jardin des Anglais, vendo preguiçosamente os transeuntes, na maioria turistas, fazendo suas caminhadas e fotografando a coluna de água que se projetava sobre as águas escuras e sempre frias do lago. Eram horas de tranquilidade extrema, nas quais Sérgio procurava esquecer suas culpas e a dor da tortura. Leo pacientemente acompanhava o amigo, respeitando aqueles momentos de reflexão. Procurava também aos poucos direcionar seus objetivos de vida. Após alguns meses, quando quase já não suportava a inércia daquele período de recuperação, apresentou a Sérgio um projeto que lhe ocorrera recentemente. Disposto a não desperdiçar toda a sua formação profissional, e ante as dificuldades em exercer a Medicina na Europa, tinha resolvido alistar-se no Corpo de Paz das Nações Unidas. Prestaria assistência médica onde fosse designado. Provavelmente em algum lugar da África. Como não tinha família poderia viver ao menos construindo um futuro melhor. Auxiliando a melhorar a condição de vida de desabrigados e necessitados. Inicialmente amedrontado com a possibilidade de perder a companhia do amigo, aos poucos Sérgio foi também sendo seduzido pela idéia, que repentinamente também daria um novo rumo, uma nova perspectiva para sua vida. A possibilidade de servir ao próximo. Resgatar o idealismo dos verdes anos. Retribuir à vida, tudo que oela lhe havia oferecido de bom através de seus amigos. Principalmente através da dedicação incondicional de Leo. Que o havia resgatado da tortura e da morte,oferecendo-lhe a possibilidade de um novo recomêço. Não demorou muito e após alguns meses desembarcavam na África. A partir de 1980, a comunidade internacional descobriu-se atônita com a devastação, miséria e epidemia de fome que assolava a Somália e regiões vizinhas. A anarquia e o início da guerra entre clãs, buscando o poder e martirizando a população geraram a intervenção das Nações Unidas. A Somália por sua estratégica situação geográfica, constitui-se em uma opção de acesso ao Mar Vermelho, passando pelo Golfo de Aden. Sua capital Mogadiscio localiza-se às margens do Oceano Índico. A abertura do Canal de Suez em 1869 desde há muito chamava a atenção das potências internacionais para os vizinhos do Sul. As influências internacionais não foram suficientes para impedir que a Somália em 1982 mergulhasse em um cenário de absoluta miséria e banditismo, promovendo o êxodo de dois milhões de habitantes famintos. A Cruz Vermelha destinava um terço de seus recursos na época para a Somália, em parceria com outras vinte agências humanitárias internacionais. As violações dos direitos humanos, rotina na Somália devastada, embargavam novas formas de ajuda humanitária. Ainda havia o caos político acompanhado de seca, fome e epidemias. O solo árido não favorecia qualquer forma de agricultura. Com o tempo inúmeras facções e milícias armadas passaram a disputar o poder, massacrando impunemente a população. Este foi o cenário encontrado por Leo e Sérgio, certamente o maior desafio de suas vidas. Lançaram-se a ele de corpo e alma, esquecendo-se de si mesmos e de tudo quanto haviam passado anteriormente. Embora em agosto de 1979 as autoridades brasileiras tivessem decretado a Lei da Anistia, favorecendo todos os exilados políticos, e eximindo de culpas todos os participantes dos violentos acontecimentos dos anos de repressão, de ambas as partes, os dois amigos continuaram seu novo projeto de vida. Passaram-se mais de dez anos antes que Leo e Sérgio verificassem a necessidade de voltar para casa. Mesmo porque após tanto tempo ausentes, o conceito de lar e família até já tivesse outro significado. Voltar para onde? Procurar quem? Ambos estavam juntos também há muito tempo. Fortes laços os uniam desde a devotada escolha de Leo, abandonando uma vida já estabelecida para resgatar Sérgio, cuidando dele até sua recuperação total. Depois, aos poucos, um tornou-se a família do outro. E jamais surgiu a perspectiva de um relacionamento estável com qualquer mulher. Marcas do passado. Sentado no sofá naquela manhã em Campo Grande, relembrando todos os acontecimentos dos últimos anos, a fuga para Santiago, os meses em Genève e os longos anos de trabalho árduo na Somália, Sérgio sentia-se quase feliz. Afinal sua vida não fora inteiramente desperdiçada. Graças a Leo, recuperara a sua auto-estima e conseguira construir uma vida digna de trabalho, altruista e edificante. Tinha reunido amigos e não se sentia mais sozinho. Guardava,porém, um infinito sentido de gratidão para com o amigo, que devotara tantos anos à reconstrução de sua vida. Deixara temporariamente Leo para trás, voltando para Campo Grande, pois secretamente acalentava a idéia de compensar parcialmente o amigo por todo o investimento em seu resgate e recuperação física. Apanhando o dinheiro amealhado em todos os anos que antecederam sua captura, secretamente investido sob um nome falso, convertera a soma em cheques de viagem beneficiando a Leo. Colocara-os em uma pasta de couro, junto com algumas fotografias antigas da época da universidade, da ditadura e da guerrilha do Araguaia. Necessitava ir ao banco e alugar um cofre,em nome de Leo,para guardar todas aquelas lembranças. Pretendia surpreender agradavelmente o amigo. De novo, subitamente,aquela agulhada no antebraço esquerdo. Era a terceira vez nos últimos dois dias. Levantou-se, apanhou a chave do carro e saiu. O Vectra prata não chegou a arrancar. Sérgio, mal ligara a ignição, quando uma dor aguda percorreu-lhe todo o antebraço. Gotas de suor frio percorreram-lhe o rosto, e uma dor em aperto tirou-lhe o fôlego. A cabeça caiu pesadamente sobre o volante. A buzina passou a soar, como um lamento ruidoso e insuportável.

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 15) RIO DE JANEIRO 1996

RIO DE JANEIRO – 1996 Glória acordou devagar. Preguiçosamente. A cortina pesada, entreaberta, deixava entrar pela larga janela da cobertura em Ipanema raios de sol,que iuminavam e aqueciam o mar calmo naquela manhã de sábado. Sentia ainda na pele e nos lábios a sensação e o gosto dos beijos de Rodolfo. O tempo passava e cada vez mais curtiam sua vida a dois. Sem o poder da juventude, gostavam muito de sexo. E este os aproximava cada vez mais. E cada dia descobriam mais motivos para definir o gosto da felicidade. Viver juntos depois de tanto tempo de separação era mesmo a realização de um sonho. Ambos tinham trazido para a relação uma bagagem de vida extensa. Experiências fortes. Sonhos não realizados, amargura, desencantos e solidão. Mas também sucesso na vida profissional, respeito e admiração. Cada um mantinha ainda sua vida como médicos, de diferentes especialidades. Ele cuidando dos males do corpo. Ela tratando as dores da alma. Tinha sido um longo caminho desde o encontro inesperado no Deux Magots na distante Paris. Embora naquele momento suas vidas estivessem longe de se reunir, sem dúvida aquele fora um momento mágico. Sentimentos reavivados, em uma fase de melancólico desencanto para ambos, fizeram germinar um afeto latente. Que floresceu em repetidos encontros ao longo dos mses subsequentes, nos quais reaprenderam tudo sobre seus caminhos anteriores. Havia ainda então Amélie. A filha de seu coração. Tão querida e tão necessitada de seus cuidados. A enfermidade agora progredia mais rapidamente. Naqueles meses de angústia, apesar de toda a sua atenção, estava claro que em breve Amelie a deixaria. Ficaria novamente só. Acompanhada das lembranças de uma vida em seu apartamento na Rue Mouffetard. E quando isto realmente aconteceu decidiu voltar para o Brasil. Reiniciar uma nova vida. Rodolfo já havia voltado há mais de um ano. Reencontrara-se com ele no Rio de Janeiro. Com o tempo aprenderam a filtrar sua vidas anteriores, delas tirando tudo que pudesse contribuir positivamente para uma nova vida a dois. E lentamente, no momento em que se sentiram efetivamente livres de suas responsabilidades em relação ao passado, no momento adequado, iniciaram um novo caminho. Sempre há tempo para recomeçar. Vieram-lhe à lembrança outros momentos inesquecíveis vividos em Paris. A chegada de Lívia, vinda do Chile. A alegria do reencontro. As trágicas notícias de tudo quanto acontecera com Leo e Sérgio. De como ambos na desventura tinham se reencontrado, e de como a infinita generosidade de Leo tinha propiciado a Lívia e a Sérgio o reinício de uma vida nova. Segura e com esperança. Exatamente Leo, o que mais havia sido comprometido e até humilhado pelas circunstâncias do passado. Mesmo assim, ressurgira para resgatar os companheiros do sofrimento e da morte. Também inesquecível foi o encontro de Lívia com Tiago e a filha. Após anos de separação, as lágrimas entre sorrisos, prenunciavam um recomeço feliz. Compensando todos os sofrimentos anteriores. Levantou-se e entrou no banheiro da suíte, construído especialmente segundo suas recomendações. O vaso sanitário isolado, dois lavatórios lado a lado no mesmo tampo, o espelho largo e bem iluminado. Toalhas separadas, e artigos de toucador individualizados. O cesto para roupas sujas de vime branco. Pequenos detalhes que auxiliam a construir uma rotina íntima livre de irritações e constrangimentos menores. Sorrindo, lembrou-se subitamente do primeiro casamento. De como Armand era desastradamente distraído e descuidado. Esquecia de levantar a tampa do vaso sanitário e respingos de urina sempre ali ficavam. Levantavam-se ao mesmo tempo, e ele sempre lhe tomava a frente. Usava o lavatório e deixava para ela um espelho respingado e as toalhas já úmidas. De vez em quando até usava a escova de dentes errada. Jamais enxugava a pia após usá-la. O fio dental usado sempre largado na saboneteira. As roupas para lavar amontoadas no chão. Vestindo um robe de seda azul, cor predileta de Rodolfo, achou-o na cozinha preparando um café da manhã especial. Omelete com ervas, torradas aquecidas na manteiga e, em lugar de café, morangos e espumante gelado. Conversaram sobre amenidades e as notícias trazidas pelo jornal da manhã. Já estava tarde e o sol quase a pino desestimulava a habitual caminhada pela beira-mar. Estavam ainda programando o final de semana, quando o telefone tocou.Um chamado de Campo Grande que mudaria completamente aquele estado de espírito.

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 14) FIM DA LINHA

Santiago do Chile continuava uma das mais belas cidades do continente americano, rodeada pela cordilheira dos Andes. Além da sua proximidade com estações de esportes de inverno, vinícolas e belas praias, respira ainda cultura, representada por seus dois prêmios Nobel de Literatura, Gabriela Mistral e Pablo Neruda. Recém saída de um golpe militar que introduzira o governo totalitário do General Pinochet, um clima de insegurança dominava a cidade. Sentados em uma das mesinhas do Mercado Central, com vista para a movimentada Calle 21 de Mayo, Leo e Sérgio tomavam um encorpado vinho tinto chileno. A tarde caía preguiçosa, e os dois amigos se refaziam dos acontecimentos dos últimos dias. Comentavam sobre a persistência de Alberto e sua obsessão em capturá-los. De como finalmente haviam se desvencilhado dele em Parati. Graças a um estratagema cuidadosamente preparado por Leo e Lívia, deixando pistas sobre uma rota de fuga do Brasil, voando do Rio de Janeiro para Lisboa. Na realidade, nada disto ocorrera. Guiados pelo mateiro, acabaram chegando a Parati. Ali alugaram uma lancha Cobra de doze pés e chegaram em Santos. Após uma noite de sono intranquilo, subiram a serra para São Paulo, de onde voaram para Santiago. Se Alberto mordesse a isca, procurando-os no Rio de Janeiro, jamais os encontraria. Haviam combinado, que se tudo corresse bem, Lívia os encontraria ali. Para então definirem seu futuro. Já estavam por merecer dias melhores depois de tanto sofrimento. Deles, apenas Lívia tinha um objetivo definido. Voar para Paris e tentar encontrar Tiago e a filha. Já para decidir o que fariam Leo e Sérgio teriam que esperar a chegada de Lívia. Sérgio necessitava ainda de tempo para retomar suas forças e fortalecer seu espírito. A tortura por tantas semanas tinha deixado cicatrizes físicas e morais. Sua recuperação apenas tinha sido possível graças à dedicação de Leo. Por enquanto não tinha a menor condição de retomar sua vida sem o apoio do amigo. Leo, por sua vez, durante as últimas semanas, praticamente não pensara em si. Agira impulsivamente apenas com o objetivo de resgatar Sérgio e ajudar Lívia a reencontrar sua família. Também se preocupara em salvar sua própria pele, pois já pressentira todo o rancor e ódio de Alberto. Nem por um momento pensara em seu futuro profissional e sua vida pessoal. Atirara-se nessa empreitada de corpo e alma, como se para dar um significado maior à sua vida. Acariciados pela brisa da noite, que se iniciava iluminada por estrelas promissoras, dirigiram-se para a estação do metro Cal y Canto, rumo ao seu hotel, próximo à Catedral. Atravessaram a Plaza de Armas, distraindo-se com o burburinho dos transeuntes e vendedores ambulantes. Era como se estivessem em outro mundo. Tranquilo, sem perseguições. Sem ameaças. Lívia chegou na semana seguinte. Resolvera permanecer mais alguns dias em Assunción, por segurança. Tentara rastrear as atividades de Alberto. Mas nada conseguira. Também não queria informar seu paradeiro a ninguém. Nem mesmo aos companheiros do partido. Escrevera outra carta a Glória, contando-lhe os últimos acontecimentos. Ocultara, entretanto, os planos para reencontrar Leo e Sérgio, pois eventualmente a carta poderia cair em mãos erradas. Mais uma vez solicitava o empenho em tentar descobrir o paradeiro de Tiago e da filha. Pelas últimas informações estariam vivendo em algum lugar em Montmartre. Esta via de comunicação com Glória, além de reacender suas esperanças de reencontrar a família, também a aliviava. Transmitir notícias significava reprogramar o presente. E naquele momento Lívia necessitava reprimir sua ansiedade. Estava cada vez mais próximo o reencontro com Tiago e a filha. Alguns dias depois, no final da tarde, o sol caia vagarosamente, aquecendo a brisa fria que permanentemente refrescava a cafeteria do Cerro Santa Lucia. Uma vista panorâmica de Santiago se oferecia aos dois amigos que bebericavam, sentados em uma das mesinhas toscas com tampo de granito. Já estavam bem acostumados a esse tipo de rotina desde que chegaram à cidade. Nada havia o que fazer e, em segurança, preguiçosamente repassavam as emoções das últimas semanas. Alberto já estava se tornando uma sombra do passado, sem qualquer oportunidade de alcançá-los. Tentavam delinear os próximos passos com a tranquilidade de quem nada tinha a temer. Para entrar no poís tinham utilizado passaportes falsos e usavam outros nomes. Esperavam apenas a chegada de Lívia. Antes de retomar sua nova vida, Leo queria estar seguro de poder encaminhar Lívia para Paris. Com certeza lá, com o auxílio de Glória, certamente haveria de reencontrar Tiago, pondo um fim a uma fase prolongada de solidão e sofrimento. Ela chegou confiante e sorridente. Um longo e caloroso abraço coroou o encontro dos três amigos. Como se tudo que tivessem passado juntos estreitasse ainda mais os laços de amizade. Era o reinício de uma nova vida onde apenas houvesse lugar para a esperança. Em seu apartamento da Rue Mouffetard, Glória lia a última carta de Lívia. As palavras traziam-lhe finalmente as melhores notícias. Muito em breve poderia rever a prima, abraçá-la e confortá-la. Mais do que isso reconduzí-la a Tiago. Depois de meses de procura havia, quase que por acaso, o reencontrado Tiago na Place de Tertre, tomando um pastis, enquanto a filha se divertia com os artistas de rua. Tiago, envelhecido precocemente, ainda guardava no olhar a força interior dos anos passados. Mas não se conteve ante as notícias de Lívia, cuidadosamente transmitidas por Glória. Sentimentos confusos acometeram-no. Lágrimas de alívio e saudade afloraram-lhe nos olhos marcados. Pensar que muito em breve estariam todos reunidos e, em segurança, era muito mais do que poderia naquele momento esperar da vida.

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 13) DESAPARECIDOS

A caminhada pela mata, agora cerrada, tornava-se mais difícil, exigindo muito da disposição e das condições físicas dos fugitivos. O calor úmido tornava o esforço ainda maior, aumentando a necessidade do número de paradas para retomada das forças. Mas sempre com a cautela de se apressarem ao máximo. Havia sempre a possibilidade de Alberto estar em seus calcanhares. E ambos sabiam que, se capturados, não haveria perdão, nem futuro. Apenas a tortura, a dor e o fim de seus dias. Uma pequena cabana de caça surgiu em uma estreita clareira na mata, embora oculta pela copa das árvores. A porta aferrolhada por fora fazia supor um refúgio abandonado. Ao entrarem, logo perceberam vestígios de presença humana recente. Um só ambiente, dividido por cortinas, duas redes penduradas, uma mesa tosca com bancos laterais, prateleiras com utensílios de cozinha e suprimentos, um pequeno fogão e um baú compunham o mobiliário. No baú, agasalhos e duas mudas de roupa, jeans e camisetas. Fora, uma pequena bomba manual fornecia água para um tanque de pedra, revestido por cimento queimado. Os dois amigos trataram logo de preparar uma refeição rápida, e caíram no sono, agradecendo intimamente o conforto das redes. Acordaram algumas horas depois. Na escuridão da noite fechada, cotucados pelo duro e frio cano de uma escopeta calibre doze. Atordoados ainda pelo sono, e aterrorizados pela ameaça iminente, defrontaram-se com a figura de um mateiro. Sérgio, transtornado e lívido, parecia viver uma de suas visões. A figura alta e esguia que lhes apontava uma arma de caça, ressurgia ameaçadora de seu passado. Era a personificação do companheiro do Araguaia, Chico Alemão, que havia deixado para trás, gravemente ferido, para ser capturado, torturado e morto pelos soldados legalistas. Era como se finalmente estivesse sendo punido pelo seu ato de covardia. Sem refletir, caiu de joelhos, chamando pelo nome do antigo companheiro. Leo que já conhecia toda a essa história, através das longas e refletidas confidências de Sérgio nos últimos meses, ficou atônito com a cena do amigo ajoelhado aos pés do desconhecido, pedindo perdão. Contudo, não o suficiente para impedir que repentinamente, aproveitando-se de um momento de hesitação do desconhecido, com um movimento rápido e inesperado, o desarmasse, lançando-se contra ele e o derrubando no solo. Ante um Sérgio cada vez mais dominado por soluços convulsivos, as posições se inverteram, e Leo agora neutralizava o mateiro, usando sua própria arma. Imobilizado, punhos e tornozelos amarrados, o recém-chegado, também surpreso pela reação de Sérgio, e mais ainda pela rápida manobra de Leo, acabou não oferecendo maior resistência. Após cuidar do amigo, que aos poucos retomava a consciência, Leo tranquilizou o mateiro que nada lhe aconteceria. Apenas queriam passar a noite na cabana e retomar seu caminho ao amanhecer. Por sua vez o desconhecido esclareceu estar usando aquele abrigo como base de apoio para o seu trabalho. Era geólogo e avaliava as condições hidrominerais das inúmeras nascentes da região. Ao chegar e deparar-se com os dois arranchados na cabana, apenas por precaução, agira com hostilidade. Também surpreendeu-se com a reação de Sérgio, e principalmente ao ouvir o nome, pronunciado entre soluços, do guerrilheiro morto. Por extrema coincidência, quase inexplicável, eram primos, nascidos em Itajubá, tendo passado toda a infância e adolescência juntos. Físicamente muito parecidos, eram confundidos com frequência. Depois, tomaram caminhos diferentes. O primo entrou para o movimento clandestino, e após absoluta ausência de notícias, foi considerado desaparecido. Provavelmente morto, já que a perseguição aos guerrilheiros tinha sido implacável. Outros amigos tinham sido também considerados desaparecidos. E em alguns poucos casos os familiares haviam sido informados de sua morte, embora nunca tivessem notícia de seus corpos, ou onde tivessem sido sepultados. Após algumas horas de conversa, já havia se estabelecido uma certa camaradagem entre os três. Por não mais representar qualquer ameaça o desconhecido foi libertado de suas amarras. Sérgio acabou relatando sua participação anterior na guerrilha e as condições que cercaram a morte de Chico Alemão. Contou também como tinha sido torturado em campo Grande, e agora como estava tentando refazer sua vida. Omitiu, entretanto, os detalhes da fase mais negativa de sua vida, quando foi um joguete nas mãos de Alberto, delatando os companheiros da guerrilha. Também nada relatou sobre sua vida em Campo Grande e suas tentativas de se redimir, trabalhando como cuidador e motorista de ambulância. De como foi preso por defender Lívia da brutalidade de Alberto durante a passeata. Espantado com a coincidência de se deparar exatamente com uma testemunha do amargo destino de seu primo, em plena mata, e em condições tão inesperadas, o mateiro dispos-se a guiá-los em direção ao litoral. Aquela região afinal lhe era bastante familiar. Com o dia já amanhecendo, tomaram um café forte, e puseram-se a caminho. Os sons da mata nas primeiras horas da manhã eram suaves e alegres. Os raios de sol atravessavam a rama das árvores, criando esteiras de luz que aqueciam a alma e faziam renascer a esperança de dias melhores. E assim suavizavam a caminhada. Até uma colorida cobra bico-de-jaca, extremamente venenosa, quase não se moveu quando passaram ao largo dela, como se naquele momento, mágico, o início de um novo dia, se estabelecesse uma trégua entre todos os seres da floresta. Horas se passaram até que pudessem, sol a pino, ao longe ver o mar. Uma promessa quente de liberdade. Pararam ali para descansar e comer. Por sorte na cabana havia provisões que permitiram aos três saciar a fome e a sede. Borboletas de cores vivas e variadas absorviam a atenção de Sérgio. Talvez porque após tão longo período de privações e tortura, tivesse até se esquecido da existência de tão frágeis e belas criaturas. Na realidade, a essência da vida era também igualmente bela. O homem é que a transformava segundo suas intenções. E estas também transformavam o homem. Tornando a criatura mais perfeita da natureza, às vezes, na mais cruel e hedionda. Leo procurava se entender com o novo companheiro, buscando a melhor forma de chegar a Parati. Seria difícil para os perseguidores imaginarem uma rota de fuga tão engenhosa, de acesso quase impossível, através da mata, descendo a serra para o litoral. E o melhor é que contavam com muitas horas de vantagem em relação a Alberto. Este, após invadir violentamente a pousada de Analucia, a soldadesca revirando tudo, constatou, irado, que mais uma vez os fugitivos haviam lhe escapado. Furioso, passou a interrogar as duas mulheres. Usando como sempre seus métodos violentos. Inicialmente ambas recusaram-se a colaborar. Até que a dor causada pelos golpes do chicote de montaria de Alberto quebraram sua resistência. Analucia, mais para preservar Dora, confessou ter recebido o irmão e um amigo, que ali haviam chegado para algumas semanas de férias. Praticamente não haviam saído da pousada, limitando-se a longos períodos de leitura e conversa ao sol, junto à pequena piscina. Não recebiam visitas, nem telefonemas. Restringiam-se a rememorar momentos de família, há muito esquecidos por Analucia. Nenhuma palavra sobre política. Ou sobre a fuga de Campo Grande. Era como se Leo houvesse planejado um reencontro tranquilo com a irmã. Aproveitando para tratar de um amigo doente. Com problemas de amnésia transitória. Para o que necessitava da tranquilidade do ambiente bucólico da pousada. Já prevendo a inutilidade do interrogatório, e mais uma vez surpreendido pela sagacidade demonstrada por Leo, apartando a irmã de qualquer conhecimento que pudesse fornecer informações sobre o paradeiro dos fugitivos, Alberto já se dispunha a prendê-las, quando seu ajudante de ordens procurou-o ansioso. Havia descoberto algo de importante que talvez esclarecesse sobre o paradeiro de Leo. Era um envelope encontrado no fundo do guarda-roupas no quarto utilizado pelos fugitivos. Esquecido entre um par de sapatos sociais ali deixados. Nele havia um roteiro de viagem programada por uma agência de turismo de Goiânia. Um vôo Rio de Janeiro – Lisboa para dois passageiros. Também um recibo de compra de dois bilhetes. De imediato, Alberto, finalmente acreditando que a sorte lhe sorria, correu para o jipe, e através do rádio entrou em contacto com a central de informações da polícia do exército, solicitando uma investigação imediata na agência de viagens em Goiânia. Juntando seus homens, deixou Analucia e Dora prostradas,e abalou-se para o Rio de Janeiro. Talvez ainda houvesse como interceptar os fugitivos. Ou pelo menos ter notícias reais de seu paradeiro. Nem que fosse a última coisa a fazer na vida iria atrás deles. Cedo ou tarde teria sua vingança. Entretanto havia antes por fazer seu tratamento ocular. A dor de cabeça agora era quase contínua. Não havia como esperar mais. Horas depois, recebeu um comunicado da central de investigações. Em caráter de urgência a agência de viagens foi investigada. Efetivamente dois bilhetes aéreos haviam sido comprados naquele roteiro, em nome de dois desconhecidos. Provavelmente utilizando passaportes falsificados. O pagamento havia sido feito em dinheiro vivo, o que até chamou a atenção do funcionário da agência. Quem comprara os bilhetes havia sido uma mulher ainda jovem, cabelos curtos, de poucas palavras. As condições inusitadas da compra, apesar dos nomes falsos, deu quase certeza a Alberto de que se tratava de Leo e Sérgio. Até a descrição da mulher de cabelos curtos coincidia com a enfermeira que havia acompanhado Leo no resgate de Sérgio da Casa de Detenção de Campo Grande. Mais tarde haveria também de encontrá-la e ajustar as suas contas com ela. O aeroporto do Galeão estava quase deserto quando Alberto e seus soldados irromperam pelo saguão principal. Sem demora, dirigiram-se para a agência da TAP ( Transportes Aéreos Portugal ), onde um funcionário mais graduado os recebeu. Autoritariamente Alberto requisitou as listas de passageiros embarcados nos últimos vôos para Lisboa. Após uma longa espera, retornou com as listas. Alberto ansiosamente percorreu todos os nomes. Repentinamente parou, atirando as listas ao chão. No vôo do dia anterior constava o nome dos dois passageiros embarcados.

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 12) EMPINANDO PIPAS

Alberto estava se preparando para sua viagem. Mas sem muita pressa. Oprimido ainda pela humilhação de ter sido derrotado pelo médico que Que neutralizara os seus planos e acabara fugindo, levando consigo Sérgio. Estes contavam com várias horas de vantagem, o que tornava muito difícil alcançá-los. A perseguição à fuga tornara-se quase inútil. Não haviam deixado pistas. Embora o aeroporto e a rodoviária tivessem sido fechados, e ninguém saísse de Campo Grande sem rigorosa investigação, Alberto pressentia que os fugitivos já estivessem longe, usando estradas vicinais, praticamente impossíveis de serem vigiadas. Essa situação de impotência queimava-o por dentro. Não entendia ainda como havia se deixado enganar. Mas ainda não encerrara o assunto. Prontamente procurou a intervenção da polícia social e política, solicitando ampla investigação sobre a vida pregressa de Leo. Cedo ou tarde uma pista surgiria que lhe permitisse capturar os fugitivos. E aí iria à forra. Os dias se passavam, e na pousada de Analucia, Sérgio se recuperava lentamente. Cicatrizava as feridas do corpo e da alma. Principalmente devido à dedicação de Leo. Este se esmerava em tudo fazer para acelerar a recuperação do amigo. Sabia que não poderiam ficar muito tempo naquele refúgio. Alberto não poderia ser despistado por muito tempo, pois tinha acesso ao sistema de informações da polícia social, que certamente acabaria localizando a pousada da irmã. E Leo conhecia muito bem o espirito vingativo do militar, que certamente não deixaria passar a oportunidade de prendê-los. Mesmo que isso pudesse resultar em prejuízo de sua própria visão. Contava apenas que a progressão da doença continuasse rápida, impedindo Alberto de continuar a perseguí-los. Passadas algumas semanas, Leo foi acordado no meio da noite pelo telefone que tocava insistentemente. Havia dado o número para Lívia para uma eventual emergência. E era exatamente ela. Aflita informou que seus contactos no partido em Campo Grande haviam-na procurado, dizendo ter Alberto finalmente localizado o paradeiro da irmã de Leo. Em seguida tinha se mobilizado para reiniciar a caçada aos fugitivos. Não havia tempo a perder. Deviam desaparecer rapidamente. Lívia também iria procurar um novo refúgio. E marcaram um local de contacto para dentro de dois meses. Um hotel em Santiago do Chile. Quem não conseguisse se contactar, era porque certamente teria sido apanhado e preso. Às carreiras, Leo acordou Sérgio, reuniu seus poucos pertences em duas maletas de mão, e despediu-se da irmã e da amiga. Dinheiro e passaportes na mão. Falsificados adequadamente para um momento como esse. A Caravan prata, roncando o motor, desapareceu na noite. Analucia por recomendação do irmão apagou todos os vestígios da presença dos dois. Pela estrada sinuosa, estreita e mal conservada Leo e Sérgio tomaram o rumo de São José do Barreiro, onde trocaram a Caravan por um jipe com tração nas quatro rodas. Este era um recurso que Leo já havia preparado para uma situação de emergência. Bem como a rota de fuga habilidosamente preparada. Já amanhecendo, subiram o íngreme e pedregoso caminho que conduzia ao alto da serra. Algumas horas depois chegaram à Pousada do Veado. Aconchegante chalé, paraíso para os que procurassem reclusão e íntimo contacto com a natureza. Registraram-se com nomes falsos, e após uma refeição à base de trutas e amendoas, seguida de uma reconfortante noite de sono, fecharam a conta e como turistas despreocupados, mochila nas costas, iniciaram uma trilha. O frescor da manhã, os sons e odores do amanhecer na serra estimularam os dois amigos. Enchendo os pulmões com o ar puro e frio, revigorados e esperançosos, embrenharam-se mato a dentro. Embora a rota tivesse sido detalhadamente planejada por Leo, a experiência anterior de Sérgio no Araguaia facilitou muito a árdua caminhada. A trilha de repente desapareceu. O que já esperavam. Embrenharam-se na mata, iniciando uma íngrime descida por um terreno desconhecido e bastante acidentado. Paravam a cada hora para descansar e rever a rota planejada. Não se depararam com nenhum animal de grande porte. Pássaros, muitos. Que enchiam a manhã com seus trinados. Macacos e até um veado. A caminhada tornava-se cada vez mais difícil. O que até lhes era interessante. Jamais alguém iria imaginar um trajeto tão difícil como rota de fuga. Principalmente para um médico não acostumado a grandes exercícios físicos, acompanhado de um fugitivo enfraquecido pela tortura. Pelo menos assim contavam ludibriar Alberto, que certamente já se encontrava em seu encalço. Acamparam rusticamente em uma pequena caverna em meio à descida e prepararam-se para passar a noite. A mata parecia viva. Os sons dos seres noturnos enchiam o ar, que mal parecia ultrapassar a copa das árvores que ocultavam parcialmente o céu estrelado. Leo não tinha nenhuma familiaridade com as manhas de acampar. Saco de dormir, chão duro, insetos noturnos nunca tinham feito parte de seu universo. Mesmo assim a estafante jornada do dia trouxe-lhe um sono pesado. Sérgio ressentia-se da longa caminhada. A caminhada através da mata trouxe-lhe à lembrança os tempos do Araguaia. Talvez por isso mesmo, em meio ao sono agitado que o acometeu novamente as visões voltaram. A figura esguia e alta, a barba por fazer, os olhos brilhantes, seu antigo companheiro de guerrilha voltava para assombrá-lo. O peito perfurado de balas, ainda o sangue vertendo, como se aquela imagem estivesse temporariamente congelada. Caminhava em sua direção dizendo-lhe algo. Mas as palavras eram inaudíveis. Sons que ecoavam mas não chegavam até ele, porque eram abafados por um outro barulho. Desagradavelmente familiar. Quase inimaginável naquele momento. O som das botas de cano alto de Alberto, aproximando-se rapidamente. Tentou levantar-se, mas mãos vigorosas o mantiveram no chão, enquanto outras o amordaçavam. Repentinamente a dor das sessões de tortura fez-se lembrar vividamente. Despertou banhado em suor. Aliviado pelo sol da manhã que se infiltrava pelas ramas das árvores. Permaneceu alguns minutos deitado, entregando-se àquele momento mágico. Sentindo-se vivo, livre e envolvido pela exuberância da mata despertada. Refeito, levantou-se lentamente e preparou um café forte. O amigo ainda dormia. Pensava em todas as reviravoltas de sua vida. Em sua juventude. Em como naqueles tempos descompromissados Leo tinha sido o alvo predileto de suas brincadeiras, nem sempre de bom gosto. E como os amigos formavam um grupo alegre e sempre disposto a viver intensamente. Mesmo naqueles anos de chumbo. A opressão política sempre presente. Violentamente limitante. Talvez exatamente por isso. Glória. A presença sempre sorridentemente inspiradora. Apaixonante. Nem tanto pela beleza. Mas pela ânsia de viver cada momento em toda a sua plenitude. Na realidade, era ela quem estimulava todo o grupo, contaminando-o com sua eterna disposição. E fora justamente através dela que ele ferira radicalmente Leo. Destruindo seus sonhos. Fazendo-o isolar-se para tentar um novo recomeço de vida. E fora justamente Leo quem o salvara. Arrancando-o das mãos de Alberto. Às custas de sua própria vida. Outra vez deixando tudo para trás, por ele, Sérgio, quem mais o ferira. Um homem de passado condenável. Em Goiânia, Lívia após avisar Leo de que Alberto retomara a perseguição, abalara-se em colocar-se também a salvo. A fuga de Campo Grande e o resgate de Sérgio haviam enfurecido o militar, que jamais imaginaria ter sido ludibriado pelos três amigos. Também nunca lhe passara pela cabeça abrir mão de Sérgio, para quem tinha reservado uma execução exemplar. Ainda que o tempo perdido na tentativa de recapturar os fugitivos pudesse lhe prejudicar o tratamento de seus olhos, que o incomodavam cada vez mais, não deixaria que ninguém o passasse para trás. Era uma questão de honra capturar e torturar o médico almofadinha e o guerrilheiro renegado. Lívia, juntando seus poucos pertences, e os dólares que Leo havia reservado para ela, exatamente para uma fuga rápida, fretou um monomotor e voou clandestinamente para Assunción, no Paraguai. Lá chegando, tentou permanecer sem despertar suspeitas, reclusa em um pequeno hotel, de onde após duas semanas conseguiu voar para Santiago do Chile. O Chile elegeu em 1967 Salvador Allende, médico e político de esquerda, constituindo-se no primeiro país ocidental a eleger democraticamente um presidente marxista. Mesmo após o golpe militar de 1973 e a tomada do governo pelo general Pinochet, Santiago continuava sendo, principalmente para os exilados políticos brasileiros, uma porta segura para as capitais da Europa. Com um pontapé Alberto arrombou a porta da pousada. Os soldados, invadindo a casa, acordaram com violência a única funcionária. Analucia e Dora, terrificadas, mal acreditavam no que acontecia. Felizmente não havia hóspedes. O dia se iniciava inesperadamente carregado de violência e medo.

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 11) TEIAS DE ARANHA

Analucia. A irmã mais velha de Leo, embora nascida em Formoso, passara a maior parte de sua vida nas vizinhanças de São José do Barreiro. Próximo o bastante para não se sentir isolada da família. Longe o bastante para manter sua intimidade não devassada e manter seu estilo de vida independente. Não era bonita. Mas tinha um corpo forte e bem feito. Que muito cedo descobrira o direcionamento de sua sexualidade. Os homens lhe eram indiferentes. Durante muito tempo lutara contra a tendência ao homossexualismo. O que lhe trouxe uma insatisfação latente. Até que finalmente se rendeu à sua natureza. Aceitando sua condição e procurando ser feliz discretamente. Mantinha uma pequena pensão, que já tinha alguma fama na cidade por servir cozinha mineira de qualidade. Cozinhava bem. Mas sempre para um número reduzido de pessoas. E assim mesmo apenas nos finais de semana. Um estoque de boa cachaça artesanal fazia toda a diferença e atraía uma clientela diferenciada. Durante muito tempo vivera só. Até que Dora entrou em sua vida, Chegou na cidade para férias. Após encerrar uma etapa de sua vida. Sobre a qual nunca falava, a não ser superficialmente. E foi ficando. Até que resolveu ficar definitivamente. Com o capital que trazia, ofereceu sociedade à Analucia para montar um negócio, explorando o turismo ecológico. A região serrana, propícia aos vôos com asa-delta, com várias quedas d´água e uma represa oferecia o cenário ideal. Em breve a pousada prosperou,constituindo-se em referência regional para os adeptos do turismo ecológico. Quase naturalmente as duas sócias se aproximaram cada vez mais. A ponto, de constituírem uma família. Até bem aceita pelos moradores locais. Histórias cavernosas até não faltavam. Comentava-se que por maus tratos inflingidos à mãe, Dora tinha sido responsabilizada por sua morte. Outras já apresentavam a mãe de Dora como doente mental. Que num acesso de fúria teria ateado fogo às próprias roupas, suicidando-se. Outras ainda que a mãe teria usado a própria filha para esquivar-se do assédio sexual do marido. De qualquer modo, apesar de tudo, o comportamento de Dora nada deixava transparecer, em nenhum momento comprometendo-se por todos esses mexericos. Já em sua vida privada demonstrava um relacionamento extremamente possessivo que sufocava Analucia.Cercava-a de todas as atenções, auxiliava na administração da pousada, funcionando até como a cabeça do casal. Passou a dominar completamente Analucia. Esse relacionamento certamente melhorou consideravelmente a vida social e a condição econômica de ambas. Mas também alterou profundamente o estado de humor de Analucia, que se tornou muito dependente de Dora. Esta, cada vez mais envolvida na relação, para captar cada vez mais a atenção da parceira, frequentemente desenvolvia ataques de hipocondria. Também procurava afastá-la de qualquer convívio social que ameaçasse a proximidade das duas. Assim o tempo ia passando e ambas continuavam juntas. Como um casal. Repartindo deveres, responsabilidades e afeto. Em uma tarde quase fria, céu nublado, uma Chevrolet Caravan prateada estacionou defronte a pousada. Era inicio da semana, e como tal, não se esperava nenhum hóspede. Desceram dois homens, um deles, precocemente encanecido, nitidamente exausto, caminhava apoiado nos ombros do outro e em uma bengala de junco. O outro, alto e magro, cabelos crespos cortados curtos, óculos de grau montados em uma delicada armação de metal, avançou sorrindo timidamente. Embora não o tivesse reconhecido de imediato, aos poucos o semblante familiar, agora esboçando um sorriso discreto, fez Analucia reconhecer Leo. O irmão mais moço. Que, deixando a família para trás, traçara um rumo melhor para sua vida. Formara-se médico e exercia a profissão em Campo Grande. Não o via há muitos anos. Mas vez ou outra tinha recebido cartas curtas acompanhadas sempre por uma quantia em dinheiro. Seu coração, de início confuso, querendo estabelecer cobranças e exigir justificativas, logo em seguida enterneceu-se e abrindo os braços abraçou longa e ternamente o irmão. Que em pequeno tantas vezes tivera as fraldas trocadas por ela. Aos poucos, e com muita emoção, Analucia ficou sabendo de toda a verdade. Tudo o que se passou desde que o irmão, logo após a formatura, chegara em Campo Grande. Gradualmente os irmãos reaprenderam a se conhecer, e reavivaram o afeto entre eles. Não demorou muito e até o combalido Sérgio se integrou à família. Passo a passo toda a trama da fuga de Campo Grande foi narrada. Inclusive a participação de Lívia o que causou uma grande surpresa em Sérgio, que até o momento não soubera da presença da antiga amiga. Os dias que decorreram desde a saída da Casa de Detenção até a chegada à pensão de Analucia foram dedicados ao início de sua recuperação física e mental. Sua comoção ao reconhecer Leo foi tal, que este pensou ter sido um erro não tê-lo preparado melhor para essa revelação. Inicialmente foi acometido por um longo período de transe, ao que se sucedeu um choro convulsivo, mas restaurador. Antes de chegar à pousada, pararam uma semana em Sousas, distrito de Campinas. Para que Sérgio se recompusesse. Tranqüilidade, higiene, boa alimentação e os cuidados de Leo fizeram com que todo o desgaste físico causado pela tortura se atenuasse. Enquanto isso Leo tomava as providências para justificar sua ausência de Campo Grande. Um amigo advogado assumiu todos os encargos para gerenciar o patrimônio de Leo. Inclusive perante a sociedade médica local e os clientes, sua ausência foi justificada como se estivesse fazendo um curso de dois anos de aperfeiçoamento profissional no exterior. Feitos os necessários ajustes econômicos dentro do maior sigilo possível, dirigiram-se para a pousada de Analucia, estrategicamente situada entre Rio de Janeiro e São Paulo, em uma cidade pequena e tranqüila. Aí poderiam passar algum tempo em segurança, enquanto Sérgio se recuperasse. Procurando também notícias dos próximos passos de Alberto. Alberto voltou a si no início da tarde. A última coisa que se lembrava da noite anterior era a enfermeira de cabelos claros curtos lhe entregando uma maleta fechada. A cabeça pesada, ainda girando. Estava despido em uma cama de hospital. Sua pistola e as botas ao lado da cama. Não havia sinal do uniforme. Nem da maleta. Um equipo de soro infundia-lhe na veia um líquido não identificado. Parecia estar sofrendo uma ressaca colossal. Embora não tivesse ingerido nada na noite anterior. A noite que deveria definir todo o seu futuro. Tentou levantar-se mas a cabeça pesou mais,tudo girou e caiu na cama inconsciente. Acordou bem mais tarde, quando um enfermeiro com traços de índio substituía o soro que lhe era infundido. Tentou perguntar algo. As palavras saiam pastosas. Um gosto de tanino na boca. Estava ainda assim quando um médico desconhecido entrou. Perguntou como estava. Talvez por respeito à patente de Alberto, resolveu não perguntar nada sobre as causas que o trouxeram para ser atendido naquele estado. Apenas afiançou-lhe que tudo estava bem, e que mais algumas horas de repouso e sono o deixariam como novo. Alberto conseguiu perguntar-lhe sobre a maleta. O médico esclareceu que ninguém a abrira. Permanecia guardada na administração do hospital. Na manhã seguinte Alberto teve alta. Sua primeira atitude foi resgatar a maleta. Vestindo um uniforme novo, trazido por um de seus batedores, abandonou o hospital. No banco de trás do carro que fora apanhá-lo, abriu a maleta e constatou que os dólares ainda estavam lá. Encontrou ainda uma breve mensagem de Leo. Esclarecia que as alterações de última hora no plano de retirada de Sérgio da Casa de Detenção foram necessárias para garantir a segurança dos fugitivos. Aconselhava também que Alberto não se deixasse levar pela ira nem pela sede de vingança. Afinal apenas algumas horas de atendimento no hospital eram compensadas pelo dinheiro que havia lhe deixado. Horas que garantiriam uma vantagem sobre qualquer tentativa de iniciar a perseguição aos dois amigos. Deixava também algumas fotos de Alberto ainda inconsciente com as mãos na maleta cheia de dólares. Os negativos estavam muito bem guardados. E serviriam como prova em qualquer processo judicial aberto para julgar ou a participação do médico na fuga de Sérgio, ou seu envolvimento em qualquer atividade relacionada ao movimento subversivo. Aconselhava que Alberto deveria aproveitar esse mesmo tempo, utilizando o dinheiro para seu tratamento. Não dispunha de tanto tempo mais. Sua visão preservada ou a caçada aos fugitivos. Alberto literalmente espumava de raiva. Por ter sido apanhado de surpresa e enganado por aqueles amadores. Por ter permanecido horas no hospital, sendo tratado por embriaguez. Mais ainda por ter as mãos atadas e não poder ir atrás dos fugitivos. Tinha planejado receber o dinheiro, e prender o médico como mentor da fuga de um guerrilheiro. Mas agora isto estava fora de cogitação. Dirigiu-se à Casa de Detenção e destruiu qualquer evidência da presença de Leo. Também os registros dos de seus interrogatórios, os da prisão de Sérgio e das sessões de tortura. Enfim tudo que pudesse liga-lo aos acontecimentos dos últimos dias. Em seguida encaminhou todas as providências burocráticas que permitissem sua saída em licença especial para tratamento de saúde. Glória recebera finalmente a carta de Lívia. Depois de todo aquele tempo voltava a ter notícias da prima. Antes de deixar o Rio para iniciar sua vida em Paris, Lívia fora a única de seus antigos amigos que a procurara. Para apoiar sua decisão, embora sem concordar com ela. Desejando-lhe sucesso e felicidade. Sua prima mais querida. O último laço de família por parte de sua mãe. Jamais imaginaria que a vida pudesse ter-lhe reservado momentos de tanta angústia. Ficara surpresa quando Rodolfo tinha revelado o seu envolvimento formal com Tiago. Principalmente sua dedicação a ele após o episódio de sua prisão e a tortura. Como tinha acompanhado Tiago em sua nova vida em São Paulo, deixando tudo atrás de si. Como apesar de tudo não se amedrontara e continuara a seu modo a lutar pelos seus projetos e pelo sonho de um país melhor, com igualdade para todos. Mesmo que as instituições democráticas e os direitos humanos estivessem sufocados pela ditadura. Lívia sempre fora a mais politizada e a mais idealista do grupo. Sempre a que mais levara a sério as condições de restrição social e intelectual em que eram forçados a viver. Enquanto ela, Glória, buscara no exterior um padrão de vida melhor, com maiores oportunidades, Lívia optara por permanecer em seu país. Enfrentando a realidade, e trabalhando para indução de mudanças, que pudessem melhorar a qualidade de vida no país. Principalmente para as classes menos favorecidas. Agora, separada de sua família, perseguida e clandestinamente refugiada em Campo Grande, pedia seu auxílio para localizar Tiago e a filha em Paris. Não seria uma tarefa fácil, mas usaria de todo o seu relacionamento para encontrar o velho amigo. Seria o mínimo a fazer, por tudo quanto a prima tinha representado em sua vida. Ficara também comovida com as peças que o destino prega nos mortais. Quais caminhos ou descaminhos tiveram contribuído para que Lívia encontrasse na mesma cidade, longe de todas as suas raízes,primeiro Sérgio, depois Leo. Justamente os amigos que mais intensamente marcaram a vida universitária de Glória. Leo, o admirador sensível, que em silêncio a desejava. Pelo menos ela assim o pressentira. Sérgio, o companheiro audacioso de tantas noites de alegria inconseqüente. E justamente os três reunidos e participantes diretos daquela noite de paixão, sexo e humilhação na virada do ano novo. Uma equação com três incógnitas que definiu o rumo de três vidas. Que se dispersaram como resultado final. Após a formatura nunca mais tinha sabido deles. Embora em algumas noites se pilhasse pensando no episódio. Em sua parcela de culpa. E como poderia ter sido melhor a vida se o grupo não se dispersasse. Ou ao menos se encontrassem de quando em quando para resgatar todos os momentos felizes vividos juntos. Mas a aranha do destino, tecendo sua teia não permitiu que acontecesse dessa forma. Entretanto, agora, por outro lado, em condições totalmente diferentes e adversas, parecia que os três estariam se preparando para um novo encontro. Uma nova oportunidade para cada um talvez reverter as conseqüências de seus passos. Ao chegar em Goiânia, usando a documentação preparada por Leo, inclusive uma falsa identidade, tratou de vender o Mercury azul. Assumiu um novo visual, completando com um banho de loja os cabelos curtos agora tingidos de castanho-escuro. Discretamente instalou-se em um pequeno apartamento, organizando-se para enfrentar uma nova fase de sua vida. Dedicada mais do que nunca a tudo fazer para reencontrar o marido e a filha.

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 10) A NOITE DO IGUANA

Leo dirigia atento aos buracos da estrada de terra. Já haviam se passado quase duas horas desde que a ambulância emprestada à Santa Casa de Campo Grande passara pelos portões da Casa de Detenção. Apesar da brisa fresca da noite, a camisa branca do uniforme de condutor, sorrateiramente apanhada no vestiário dos funcionários, estava empapada de suor. O mesmo suor que lhe banhava e testa e merecera olhares atentos dos guardas dos portões. Mesmo assim conseguira passar pelas sentinelas sem dificuldades. E dirigir-se para a saída de Campo Grande com uma velocidade regular, mas não suficiente para despertar qualquer suspeita.A direção do carro era dura, a embreagem muito baixa, o motor rasnava nas subidas, os amortecedores pareciam exalar o último suspiro. Tudo tão diferente do conforto e desempenho de seu Mercury azul importado. Mas para aquele momento nada mais era tão adequado quanto a velha ambulância, que valorosamente rompia a escuridão da noite, e conduzia sua carga, distanciando-se cada vez mais do centro de Campo Grande. Vez ou outra olhava para trás para conferir as condições de seu passageiro. Deitado em uma maca e atado por correias de couro o corpo desfalecido de Sérgio, em péssimas condições estava alheio a tudo que se passava à sua volta. Vestindo roupas e sapatos de má qualidade, obtidas de funcionários do presídio, a pele coberta de equimoses e cicatrizes, a musculatura atrofiada, os dedos das mãos grotescamete desviados por múltiplas fraturas, resultado do prolongado período de tortura, mantinha-se torporoso. Irreconhecível. Vê-lo assim , fora um duro golpe para Leo. Seu antigo companheiro transformado em um farrapo humano. Um lixo descartável, que, entretanto, trazia dentro de si uma inquebrantável obstinação em permanecer vivo, mesmo sob o atroz sistema de tortura a que era há meses submetido. Resistia mais por instinto. Como se esperasse em toda a sua miséria humana, um resgate que nunca veio. Até o momento em que Alberto, o torturador, foi consultar-se com Leo. ¨¨ ¨¨ ¨¨ Desde a primeira consulta o antagonismo franco entre ambos se mostrou evidente. Foi quase com insensibilidade, condição que nunca fez parte do caráter de Leo, que este deu a Alberto a notícia de que sua visão estaria irremediavelmente perdida, e a curto prazo, caso não se submetesse a um tratamento cirúrgico imediato. Com o agravante que os melhores resultados seriam obtidos se a cirurgia fosse feita no exterior. Foi um militar arrasado que saiu da clínica. De repente toda a segurança, a soberba, a crueldade, a vaidade extrema foram substituídas pelo vazio de um futuro sem esperança. A mesma esperança que tudo fazia para arrancar do coração daqueles que torturava desapiedadamente. E nas semanas que se seguiram, mesmo assim, manteve sua rotina diária, obsessivamente mais rígido e brutal. Comportava-se como um animal ferido e acuado. Foi nesse estado de ânimo que, sob tortura, arrancou de Sérgio uma pista que o ligou a Leo. Embora ainda sem certeza de nada, intimou Leo a mais uma vez depor. Desta vez na Casa de Detenção. ¨¨ ¨¨ ¨¨ Lívia aguardava ansiosa o retorno do amigo. Não imaginava outra razão não que não fosse o seu passado, para que Leo mais uma vez fosse interrogado pela autoridade militar. Não havia muito, conseguira localizar o endereço da amiga Glória em Paris. Após alguns dias de indecisão escrevera uma carta, contando por tudo que passara nos últimos anos. Sua vida com Tiago, a perseguição por ele sofrida, a prisão e a tortura, o reencontro com Rodolfo e como este fora essencial para a liberação de Tiago. Também sua decisão interior de continuar a lutar no movimento secreto para a redemocratização do pais. O reencontro de Tiago com o pai, a fuga, os desencontros e o início de uma nova fase da vida. Solicitava à amiga que procurasse encontrar sua família. Tivera o cuidado de viajar para a fronteira do Paraná, para de lá postar a carta para Paris. Mesmo com todos esses cuidados tinha vivido em sobressalto nas últimas semanas, receosa de ter deixado alguma pista, e ser descoberta de uma hora para outra. E também havia Sérgio, ou pelo menos a sombra do Sérgio que um dia conhecera. Sua transformação radical, seu passado sem respostas. E agora também seu misterioso desaparecimento. Como se tivesse sido engolido pelo seu próprio passado. ¨¨ ¨¨ ¨¨ Alberto também aguardava intranquilo a chegada de Leo. Desde o dia em que soubera que em breve perderia a visão, em desespêro íntimo, mas nunca extravasado, tinha procurado uma saída. Mas até agora nada havia encontrado. A dor, cada vez mais constante, o torturava, dificultando-lhe o raciocínio e aguçando sua crueldade.Descontava nos subordinados e nos simpatizantes da guerrilha, que perseguia sem tréguas, toda a sua amargura e pavor por saber que em breve seria um deficiente. Sem família. Sem amigos. Nem mesmo os companheiros de farda tinham qualquer afeto por aquele indivíduo cruel e sem escrúpulos. Que tudo fazia em benefício próprio e de sua carreira. E, de repente, em uma das frequentes sessões de tortura, em sua inconsciência, Sérgio deixara escapar o nome de um dos amigos da faculdade de medicina. Balbuciando palavras inintelegíveis, lembranças profundamente gravadas em seu espírito pareciam emergir, ativadas pelo sofrimento físico e pela tortura mental, mas detinham-se, contidas por uma barreira invisível, como se o passado até para Sérgio fosse de acesso impossível. Procurando nos arquivos do setor de identificação no Rio de Janeiro, encontrara a informação segundo a qual Sérgio e Leo tinham se formado no mesmo ano, porém em universidades diferentes. Era uma pista muito frágil. Mas a única que dispunha. E com sagacidade e sorte poderia fazer bom uso dela. Talvez, apenas talvez uma solução para seu problema. Para uma nova vida. Já que a de militar tinha seus dias contados. ¨¨ ¨¨ ¨¨ Leo passou pelas sentinelas dos portões da Casa de Detenção identificando-se com uma sensação de peso no peito. Ansiedade, mas não temor. Estava certo que sua intimação nada tinha a ver com sua ajuda a Lívia. Não havia qualquer indício disto. Por outro lado tinha como trunfo agora a posição vulnerável de Alberto. Conhecia talvez o mais importante de seus segredos. Mesmo assim, por conhecer agora melhor o torturador, gostaria mesmo de estar bem longe dalí. A Casa de Detenção desde que chegara a campo Grande era para ele o símbolo da arbitrariedade e da truculência naqueles tempos de opressão. Subira as escadas de madeira encardida que davam acesso ao segundo piso, procurando a sala de reuniões, onde se daria a entrevista. Uma mesa longa de tampo de madeira, marcada por garatujas e nódoas escuras, seis cadeiras retas e mais nada. Nenhum armário ou equipamento que fizesse supor qualquer tipo de arquivo ou documentação armazenada. Também nenhum quadro nas paredes nuas. Nem mesmo a tradicional foto oficial do presidente. Após meia hora de espera – tinha certeza de que o atraso era uma técnica de intimidação – a porta se abriu e Alberto entrou sozinho. De novo as botas de montaria rigorosamente engraxadas, a farda estalando de engomada, o cabelo vaselinado. Os óculos escuros impediam que seus olhos falassem. Apenas os lábios finos se moviam, cortantes e incisivos como lâminas cortantes. Iniciou justificando que aquela entrevista poderia resolver alguns problemas de rotina pendentes, para os quais a ajuda de Leo poderia ser essencial. Solicitou-lhe também, desde que estivesse de acordo, que respondesse a algumas perguntas`pessoais. Estas cobriram toda a sua adolescência e formação profissional. Principalmente seu relacionamento social na época da universidade. Cautelosamente, e surpreso com a aparente cordialidade do interlocutor, Leo procurava responder com segurança, escolhendo as palavras, e sem demonstrar as contradições e lembranças, que aquelas perguntas provocavam. Mas não se deixava envolver por elas, e media bem as suas respostas. Percebia que o militar nada tinha de concreto e que estava jogando verde para colher maduro. Isto o fortalecia, mas mantinha-se sempre na defensiva. Ficou quase abalado quando o nome de Sérgio foi citado. De repente, como num turbilhão voltaram as imagens de um passado que para ele estava soterrado. Pelo menos deveria. Glória. A humilhação. O reconhecimento da sexualidade abalada. A deserção dos amigos. O início de uma vida nova. A conquista de um lugar ao sol. E agora essas perguntas tão sem propósito. Partindo de um indivíduo desclassificado. Marcado pelo destino a pagar por todos os seus atos criminosos. Então o rumo da conversa mudou. Alberto passou a indagar sobre os detalhes da cirurugia a que teria que se submeter. Qual a melhor indicação para o serviço a procurar, qual o especialista mais indicado. Qual o custo operacional presumido. Leo, cada vez mais confuso com o rumo que o interrogatório tomava, tentava responder objetivamente, mantendo a lucidez e sua postura defensiva. Cada vez mais entendia menos onde Alberto queria chegar. Os óculos escuros não permitiam a identificação da mensagem do olhar. Funcionavam como um bloqueio. Leo não conseguia ler nos olhos de Alberto sua principal intenção. Este subitamente começou a falar de sua vida, mansamente. Sobre como iniciara sua carreira militar. Sobre suas atividades de campo durante os meses da guerrilha do Araguaia. Até como fora promovido em função das informações que conseguira obter de seus prisioneiros. Depois como viera parar em Campo Grande, suas atividades locais. E quanto sua vida estaria comprometida com o avanço de sua doença. Como era incerto e amargo seu futuro. Também confessou que apesar de cômoda, sua situação financeira não lhe permitiria tratar-se adequadamente. Novamente desviou o assunto para as consequências que o movimento de guerrilha traria para a família e sociedade brasileira. Cinicamente argumentava que o rigor de sua conduta para com os guerrilheiros e simpatizantes nada mais era do que atos patrióticos que buscavam a reinstalação da ordem política e social no país. Apenas procurava desempenhar bem seu papel de identificar e punir radicalmente qualquer elemento que pudesse contribuir para o caos social. A medida que falava o tom de sua voz tornava-se ameaçador. As narinas dilatadas, a respiração ofegante traiam-lhe a paixão e o ódio com que sempre desempenhou suas funções de policial e interrogador implacável. Leo retraíndo-se via a figura de Alberto se avolumar, alimentada por uma onda de emoção negativa, que tornava seu cinismo um impetuoso desabafo. Talvez o reconhecimento naquele momento de tudo aquilo que estava na iminência de perder. E que não estava disposto a entregar tudo sem luta. Faria qualquer coisa para resgartar sua vida. Repentinamente, tomando grosseiramente Leo pelo braço, convidou-o a acompanhá-lo. Num tom que não admitia recusas. Desceram pelas escadas, encaminhando-se para o pátio central, utilizado pelos prisioneiros para raros momentos de exposição ao sol. Sempre em pequenos grupos e fortemente escoltados. Naquela tarde o pátio estava vazio. O sol a pino, inclemente, fazia brotar gotas de suor que escorriam vagrosamente pela face de Leo. Seguramente não eram causadas apenas pelo calor. Ao seu lado, em silêncio, Alberto caminhava vigorosamente. Sem transpirar. As botas de montaria tirando sons ritmados do piso revestido por asfalto em mal estado de conservação. Chegaram a uma ala fortemente vigiada. Alberto abriu a porta e introduziu Leo em um ambiente escuro, sem janelas. Uma porta de ferro reforçada dava acesso a um corredor, que exalava um cheiro de mofo e urina. Chamando o carcereiro, Alberto conduziu Leo ao piso inferior, iluminado apenas por fracas lâmpadas. Cubículos se alinhavam em um dos lados da parede. Sem qualquer janela para iluminação ou ventilação. O odor pesado persistia, agora fétido. Repentinamente pararam defronte a uma das celas. Quando o carcereiro a abriu, Alberto impetuosamente empurrou Leo para dentro. ¨¨ ¨¨ ¨¨ Muito distante dali Glória preparava-se para iniciar mais um dia de trabalho no hospital. A rotina a ocupava inteiramente, impedindo-a de pensar em seu casamento fracassado. Na filha adotada por sua alma, com um futuro tão limitado. Atender aos seus pacientes, auxiliando-os a carregar as dores da alma, sempre que não pudesse tratá-las, dava sentido a sua existência. Estavam distantes os dias de alegria inconsequente e irresponsabilidade acadêmica. Vez ou outra vinham-lhe os ecos de um relacionamento que deveria ter sido inesquecível, mas que se perdera no labirinto dos meses e anos deixados para trás pelo universo de cada novo dia. Seus amigos onde quer que estivessem não lhe pertenciam mais. Tinham seguido rumos diversos e desconhecidos. Pelo menos era o que pensava até há algumas semanas, quando surgido do nada, Rodolfo a encontrou. Sem qualquer preparo, desatenta, em uma tarde preguiçosa no Deux Magots. Até o cenário romântico e intelectual da pequena praça em Saint-Germain-des-Près contribuira para a desordem afetiva daquele encontro. Inesperado. Carregado de emoções. Emoções e sentimentos que já havia tempo não se lembrava de experimentar. Foram momentos que convulsionaram sua forma de vida, assumida os últimos anos. O passado retornou sobressaltadamente. As notícias trazidas por Rodolfo confirmavam o clima de intranquilidade e violência que o país deixava transparecer para o exterior. Em Paris, inúmeros brasileiros exilados mantinham grupos de discussão e autojuda. Tentando resistir à distância à autoridade militar instituída. A guerrilha do Araguaia tinha conseguido despertar o interesse estrangeiro. Mas através de interesses excusos, visto que o próprio governo francês, emprestando solidariedade à ditadura, enviou consultores militares, que passaram a treinar as tropas governistas com táticas utilizadas na Legião Estrangeira, com larga experiência em guerrilhas no norte da África. Com apreensão Glória tomou conhecimento do que havia ocorrido com seus amigos e do destino incerto de Lívia, Tiago e Sérgio, este constando até na lista dos desaparecidos. Um misto de pesar e até arrependimento a envolveu. Por estar ausente do seu país nessa fase crítica, e principalmente por não ter convivido com os amigos, exatamente nos momentos em que mais poderiam necessitar dela. Repensou pela milésima vez o casamento frustrado. Sua vida de dedicação profissional e a filha, que dela tanto necessitava. Não fosse por ela, não resistiria ao impulso de retornar ao Brasil. Mas sabia que isto era agora impossível. Sua vida tinha tomado um rumo que não permitia mudança de curso. Uma rota que nos próximos anos a levaria a uma solidão crescente e insuportável. ¨¨ ¨¨ ¨¨ Leo, tomado de surpresa, desequilibrou-se porta a dentro, estatelando-se no piso irregular de cimento frio. A porta fechou-se com estrépito. De imediato foi envolvido pela escuridão. O mau cheiro era insuportável. Uma onda de náusea mal reprimida o acometeu. Ainda fora de si, e sem saber o que estava ocorrendo, pouco a pouco os olhos de Leo foram se acostumando ao escuro. Não havia janelas. A ventilação, quase inexistente, fazia-se por uma portinhola gradeada na porta. Ouviu a voz de Alberto cinicamente sugerindo que aproveitasse o reencontro. Os saltos de suas botas de montaria, afastando-se, ressoavam no corredor. Pouco a pouco foi-se apercebendo de que não estava só. No fundo da cela, encolhida no canto, uma sombra quase amorfa jazia inerte. O corpo esquálido vestindo apenas uma bermuda esfarrapada, braços e pernas com equimoses, cicatrizes e pústulas. Cabelos longos, emaranhados e sujos. A barba cerrada emoldurando olhos encovados. Olhos claros que o fitavam tentando reconhecê-lo. Aqueles mesmos olhos que tanto haviam sorrido para ele em quantos momentos de alegrie companheirismo. Alguma coisa parecia muito familiar a Leo. Foi a duras penas que algo emanado daquele destroço humano atingiu Leo, fazendo-o reconhecer o antigo camarada. Nada ali fazia lembrar o Sérgio exuberante, inconseqüente e atrevido dos tempos da faculdade. Mas por baixo de toda a destruição aparentada por aquele corpo maltratado, finalmente teve certeza de que era mesmo o amigo. Ao menos, uma pálida sombra. Controlando os sentimentos revoltos, e mais ainda a náusea que o acometia, aproximou-se, tentando fazer-se reconhecer. A mente do infeliz estava como que amortecida pela tortura contínua dos últimos meses. Parecia esforçar-se por retomar lembranças ou imagens que pudessem recontactá-lo com a realidade. Balbuciava frases desconexas. Estava desidratado e febril. Não chegou a reconhecer Leo, embora pressentisse nele alguma forma de conforto físico espiritual. Deixou-se abraçar e desfaleceu. Como tantas outras vezes, procurando na inconsciência refúgio e amparo. Leo deixou-se ficar estarrecido, sentado no chão da cela sem mobília. A cabeça de Sérgio recostada em sua perna esquerda. Já não sentia mais o fedor e a umidade abafada do ambiente. Vinha-lhe em seqüência um conjunto de imagens vertiginosas e desordenadas, Seus irmãos,a ida para o Rio, o primeiro encontro com Glória. Os anos da universidade, os amigos e a convivência que havia pouco a pouco transformado seu jeito de ser. Até mesmo a humilhante noite de fim-de-ano na mansão do Jardim Botânico. Tudo parecia ter revivido com cores fortes e vibrantes. Contrastando com a imagem atual de um Sérgio aniquilado. Física e moralmente. Sem identidade, frágil, sem dignidade. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Que rolaram abundantemente por sua face. Chorava pelos momentos e frustrações do passado. Pelas perdas familiares. Pelos seus desencontros. Pelo desperdício de tantos momentos seus e de seus amigos, que deixara para trás. Pela imagem, condição humana e dignidade de Sérgio. Perdidas. Pelo reencontro dos dois naquela cela fétida. Pelo ódio surdo que começava a nutrir pelo carcereiro e torturador Alberto. ¨¨ ¨¨ ¨¨ Um gemido, quase um lamento, fez-se ouvir na maca, a um solvanco maior da ambulância na estrada mal conservada.Noite a dentro, vez ou outra os faróis iluminavam,atravessando o leito carroçável, a corrida rápida de algum roedor de hábitos noturnos. Roedor que, de imediato, lembrou-lhe Alberto. Asco,ódio e ao mesmo tempo pena. Pena pela pequenez de alma, pelo ser abjeto. Pelo desperdício de uma vida, empenhada apenas em fazer sofrer o próximo. O iguana é um réptil de hábitos diurnos. Quando habita a terra, geralmente alimenta-se de cactos, apesar dos espinhos. Já a espécie marinha permanece horas imóvel sobre as rochas. Aquecendo-se ao sol. Por ter o sangue frio, necessita do calor do sol para gerar energia necessária aos sucessivos mergulhos na água fria do mar. Suas garras afiadas aderem aos recifes, permitindo-lhe, apesar do movimento das ondas, alimentar-se das algas. Leo imaginava que, para escapar à perseguição de Alberto, deveriam imitar o iguana. Permanecer imobilizados a maior parte do tempo, para não despertar suspeitas, enquanto Sérgio se recuperava fisica e espiritualmente. ........................................................ Alberto o tinha deixado quase duas horas na cela com Sérgio. Quando a porta se abriu, dois carcereiros entraram, levantaram Leo e o levaram para fora. Ainda aturdido e envolto em forte emoção, Leo deixou-se conduzir à ala central da Casa de Detenção. De novo na sala de reuniões, deixou-se cair em uma das cadeiras retas e desconfortáveis, apoiando os cotovelos na mesa de madeira lascada. O rosto entre as mãos, tentando se recompor. E ao memo tempo a tortura mental de não conseguir advinhar as intenções d Alberto. De quem tudo se poderia esperar. Ansiedade também por Lívia, que até o momento estivera fora do cenário. Mas com os antecedentes dela, não poderia esperar impunidade por muito tempo. Pelo menos ela deveria ser preservada, já que, pelo seu relacionamento com Sérgio, seu futuro estava praticamente nas mãos de Alberto. O som das botas ecoou no corredor, anunciando o fim da trégua. Alberto entrou trazendo um volumoso arquivo e sentou-se defronte a ele. Folheando lentamente as páginas, sem qualquer comentário, passou a apresentar todas as evidências registradas em relação à vida pregressa de Sérgio, desde seu recrutamento pelo movimento clandestino, sua chegada ao Araguaia, seu primeiro assentamento e ativação como revolucionário junto aos povoados da região. Também como,após escapar de uma emboscada, na qual importante líder da guerrilha fora aprisionado e executado, Sérgio desaparecera. Para reaparecer meses depois e sob tortura transformar-se em colaboracionista. Também como desaparecera novamente, para ser novamente preso, agora em Campo Grande, como ativista e subversivo da ordem. Fechando o arquivo, Alberto cravou-lhe os olhos brilhantes e atemorizadores. E continuou a falar, agora ameaçadoramente. ¨¨ ¨¨ ¨¨¨ Lívia já não mais se continha. Um aperto no coração traduzia toda a ansiedade da espera. Leo já estava pelo menos há seis horas na Casa de Detenção. Pelo que conhecia de Alberto, que intimara a presença de Leo para prestar esclarecimentos - sobre o que ? – essa demora somente poderia trazer maus presságios. Embora imaginava ter seu futuro em risco, e assim diminuir ainda mais as oportunidades de rever sua família, temia também por Leo, que generosamente a acolhera como uma irmã muito querida, que após muito tempo fora tivesse voltado para casa. Ela também aprendera a considerá-lo como um irmão presente e protetor. Confidente e cúmplice. Os pensamentos mais desencontrados faziam girar sua cabeça. Batidas na porta. Aflitas. Foi um Leo transtornado que entrou no pequeno apartamento de Lívia. Cabelos em desalinho, olhos avermelhados, as roupas amarfanhadas e uma expressão de espanto no olhar. Tomando as mãos de Lívia, sem mesmo esperar por um copo de água, contou-lhe todas as emoções das últimas horas. Emoções que também abalaram Lívia. As voltas que o mundo dá. Sérgio vivo, mas em que condições. Um farrapo humano. Mesmo assim o antigo companheiro de uma fase dourada de sua vida.Talvez a mais feliz.Até a festa de fim de ano de 1968. Depois dela o grupo se desfizera, cada um tomando o seu caminho. E agora pela obra do destino os três estavam juntos outra vez. Ou pelo menos quase isso. Unidos pelo passado que retornava e pelo presente,abraçaram-se. Lágrimas selavam um pacto de amizade que os amparava naquele momento. Ficaram alguns minutos gozando aquele momento. Trocando forças renovadas. Abrindo a geladeira, Lívia serviu em dois copos altos um Chateau Duvalier gelado. O vinho desceu revigorante. No sofá cor de terra Leo descrevia as precárias condições de Sérgio, que nem chegara a reconhece-lo, tal o grau de sofrimento físico a ele imposto. Depois seus olhos tornaram-se mais duros, rancorosos. Explicou como Alberto descaradamente havia posto em suas mãos a vida de Leo. Como friamente havia lhe contado sua firme intenção de prolongar as sessões de tortura enquanto Sérgio vivesse. De nenhum modo este escaparia ao seu destino de guerrilheiro fraco e incompetente. Traidor da pátria e até da guerrilha. Um verme que não merecia complacência. Seu saco de pancadas, sempre disponível para mais uma sessão de sadismo. E agora o doutor sabidamente ligado a ele. Seria um prato cheio para os mexericos locais. O Dr. Leonardo, eminente médico de Campo Grande, ligado ao movimento clandestino, através de um de seus mais ativos quadros, denunciado por um dos ativistas que programaram a passeata, onde cidadãos inocentes ficaram feridos. Seus superiores certamente iriam cumprimenta-lo por mais esse sucesso. Seus superiores. Que certamente nesse momento de sua vida, com sua carreira e seu futuro radicalmente comprometidos pela enfermidade que o afligia, o abandonariam à sua própria sorte. O exército não teria condições nem a intenção de bancar o seu tratamento. Esta então era a única oportunidade do doutor safar-se dessa enrascada. Dinheiro vivo. Para financiar o tratamento de Alberto no exterior e bancar o início de uma nova vida. Caso contrário, os rigores da lei. Esta estava agora em suas mãos. E a execução imediata de Sérgio. Mandara-o embora, sem mais uma palavra, confiscando-lhe os documentos. Assim nem pensaria em deixar a cidade. Dera-lhe vinte e quatro horas para decidir. ¨¨ ¨¨ ¨¨ ¨¨ ¨¨ Teve que parar outra vez. O soro com nutrientes transfundido continuamente em Sérgio acabara. Necessitava de troca. E ele também de esticar um pouco as pernas. Já estava dirigindo há quatro horas. E a estrada não ajudava em nada. Esburacada e sem sinalização. A água desceu reconfortante e aliviando a secura da boca. Prata. Águas da Prata. Interior do estado de São Paulo. Água pesada, alcalina, de gosto forte. Água não deveria ter gosto. Mas tem. Sabia distinguir a água mineira de São Lourenço, levemente sulfurosa, da procedente de Lindóia, também paulista. Eram amenidades e até pensamentos sem importância que alimentava para diminuir a urgência da situação. Flagrava-se a todo momento olhando no espelho retrovisor,a verificar se estava sendo seguido. Não confiava em Alberto. Discutira com Lívia a chantagem sofrida, e a primeira intenção desta, foi tentar entrar em contacto com seu braço do movimento clandestino. Leo argumentou que não haveria tempo para qualquer providência dessa natureza. Também que o movimento nessa fase estava muito enfraquecido e não teria condições de protegê-los. Não havia sequer tempo para um plano de fuga com apoio dos guerrilheiros. E ainda havia as condições físicas de Sérgio. Agora, mais do que nunca o jamais o deixaria entregue à sanha de Alberto. Teriam que agir por si mesmos. Conseguir os dólares até que não era muito difícil. Os anos de medicina em Campo Grande tornaram Leo, por ser sozinho, um homem de posses. O mais difícil, mas também o mais importante era tentar neutralizar Alberto. Uma vez que este recebesse o dinheiro, nada o impediria de romper o acordo. A não ser que... ¨¨ ¨¨ ¨¨ ¨¨ Decorrido o prazo,um jipe de cor oliva do exército apanhou Leo. Escoltado por dois PM foi reconduzido à Casa de Detenção. Ainda abatido pelos acontecimentos do dia anterior, subiu as escadas de madeira encardida e foi deixado na sala de reuniões. Alberto entrou. Deparou-se com os olhos insones de Leo. Entretanto,deixando perceber uma condição estranha. Diferente da fragilidade habitual. Uma indefinível impressão de fôrça nunca antes antevista. Firmeza.Ostensivamente exibia uma postura de resistência que atingiu Alberto inesperadamente. Quase que o tirando de seu prumo. De sua habitual segurança. Cautelosamente Alberto iniciou o diálogo, procurando advinhar de onde vinha a inesperada firmeza do médico. Este rispidamente cortou o interlocutor, demonstrando que não estava ali para nenhum tipo de amenidade. Perguntou diretamente quais eram as pretensões do militar. Cem mil dólares americanos. Leo argumentou que não dispunha de tal soma. E sobre a dificuldade de levantar a quantia a curto prazo. Teria que liquidar parte de seu patrimônio. Alberto irrevogável ainda pressionou, usando a força de um mandato de prisão preventiva. Mais ainda sua disposição de acabar com o que restava de vida de Sérgio. Leo sem se conter mais, levantou-se inesperadamente e esbofeteou violentamente Alberto. Este, a face lívida, agora marcada, recuou e, sacando sua pistola de serviço, apontou-a trêmulo para o oponente. Antes que pudesse disparar, Leo tranquilamente sentou-se e expôs com clareza, que qualquer ato de violência contra ele ou Sérgio inviabilizaria completamente qualquer tipo de acordo. Lentamente ante um Alberto descontrolado e confuso apresentou suas condições. Sérgio teria tratamento médico imediato e seria libertado. Ou pelo menos seria removido clandestinamente da Casa Detenção. Leo e o amigo receberiam documentos legais e um salvo conduto que lhes permitisse sair de Campo Grande e também do país. E a certeza de que não seriam perseguidos ou capturados pela polícia política ou pelo exército. Era isso ou nada. Não deixou a Alberto qualquer escolha. O dinheiro seria trocado em local seguro por Sérgio e os documentos que facilitassem a fuga. Qualquer fator que comprometesse a integridade física dos dois amigos, ou que resultasse em sua captura resultaria na perda dos dólares. E assim os planos e o futuro de Alberto estariam definitivamente enterrados. O militar espumava de cólera. Chegou a brandir a arma para agredir Leo, que, impassível, continuou sentado. Demonstrando sua definitiva posição. Considerara acertadamente que Alberto tinha somente aquela opção para esperar por um futuro sem submissão à incapacidade. Para o militar, que sempre vivera a arrogância da impunidade, um futuro doentio, miserável e solitário representava uma sentença de morte. E assim Leo acertou com Alberto o plano de fuga previamente combinado com Lívia. Esta finalmente também estaria acertando suas contas com Alberto. Disfarçado de motorista de ambulância e acompanhado em pessoa por Alberto, Leo entrou na enfermaria da Casa de Detenção. Ali por sua exigência, nos últimos dias Sérgio recebera cuidados médicos, mas ainda se apresentava em condições deploráveis. Alberto tinha realizado um magnífico trabalho de degradação humana através da tortura. Corpo e alma quase esfacelados. Torporoso,mantinha-se completamente ausente, sem qualquer consciência do que acontecia. Não dava demonstrações de reconhecer nada nem ninguém. Sem deixar-se levar pelas emoções, auxiliado pelo enfermeiro responsável pelo plantão noturno, Leo por intimação de Alberto conduziu o corpo do amigo em uma maca. Atravessando o pátio iluminado por uma grande lua amarela, lua cheia, dirigiu-se à ambulância comprida, modelo recente da Chevrolet, estacionada próximo ao prédio central, onde uma enfermeira de cabelos curtos claros aguardava com uma maleta de instrumental médico na mão. Sérgio foi transferido para a ambulância enquanto a enfermeira assinava os papéis referentes à transferência do preso para a Santa Casa de Campo Grande. A enfermeira sentou-se atrás com Sérgio, fazendo uma checagem de seus sinais vitais. Alberto, conforme o combinado, sentou-se no banco da frente, ao lado do motorista. Sem ligar a sirene, a ambulância cortou as ruas da cidade, quase desertas naquela hora da noite, escoltada por dois batedores em motocicletas. Ao entrarem no estacionamento do Pronto Socorro, os batedores esperaram em suas motos no lado de fora. A maleta de instrumental médico foi passada para Alberto. Este rapidamente a tomou, abrindo desajeitadamente o fecho. Um sorriso de triunfo cortou-lhe a face, esticando a pele marcada por cicatrizes de acne. Uma excitação quase inebriante o acometeu. Seu futuro estava ali. Em suas mãos. Por um breve momento deixou-se levar pelo sucesso de seus planos. O suficiente para perceber apenas tarde demais a picada da agulha hipodérmica em seu pescoço. A expressão compenetrada da enfermeira, a visão da seringa vazia, um aquecimento lento a subir-lhe pelas pernas, envolvendo-lhe todo o corpo, e logo após a indefinível sensação de uma mergulho profundo na escuridão total. O corpo de Sérgio foi transferido para uma segunda ambulância, de modelo diferente, agora uma Kombi, estacionada ao lado. Leo e Lívia derramaram uma garrafa de uísque barato, contrabandeado do Paraguai no uniforme de Alberto. Fizeram antes com que vários goles fossem vertidos garganta abaixo. Em seguida, colocando o corpo estatelado de Alberto em um carrinho, levaram-no para o pronto atendimento. Para ser atendido pelos efeitos de uma presumível noite monumental no bordel da cidade. Tiveram também o cuidado de fechar a maleta, e prende-la com um bracelete de metal ao punho do militar. Este, ao se recuperar, teria muito com o que se preocupar. Mas também teria o seu silêncio comprado pelos dólares contidos na maleta. Sem esperar pelo médico de plantão, e as informações que necessariamente deveriam ser dadas, Leo e Lívia entraram na Kombi. A uma velocidade segura, passaram pelos batedores que aguardavam na saída do estacionamento sem despertar suspeitas. Estes mal sabiam, que após algumas horas de espera, estariam conduzindo seu superior para casa, em péssimas condições, como se estivesse passando por uma ressaca, como há muito não viam. Sem condições de lembrar-se de quase nada. Sem condições também de tomar qualquer medida, capaz de deter os fugitivos. Algumas ruas além, Lívia desceu da Kombi, trocando o uniforme de enfermeira por jeans e camiseta leve. Entrou no Mercury azul de Leo estacionado discretamente em um posto de gasolina, e dirigiu-se para casa. Passou o resto da noite tingindo os cabelos de castanho-escuro com toques avermelhados. Preparou uma maleta com duas mudas de roupa. Tomou um café forte e voltou ao hospital. A turma da manhã ainda não havia chegado. Apenas os responsáveis pela limpeza terminavam a faxina do dia. Dirigiu-se ao seu armário. Sem pressa apanhou uma mochila com roupas leves e uma grande soma em dinheiro vivo que Leo lhe havia entregado, especialmente para um momento como aquele, e saiu. Os saltos anabela tirando sons ritmados do piso recém-limpo. Entrou no Mercury azul, e dirigiu sem parar. Os primeiros raios de sol, prometendo uma manhã acalorada, indicavam-lhe o rumo de Goiânia.

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 9) O FIO DA MEADA

Os dias que se seguiram foram de intensa preocupação. Os amigos não se procuraram. Conversavam rápida e discretamente nos corredores do hospital. Esperavam pelos próximos movimentos de um jogo, do qual não conheciam as regras. Também não previam o final. A entrevista de Leo na delegacia de polícia tinha tido mais ares de interrogatório do que simplesmente um depoimento para esclarecimento dos fatos ocorridos durante a passeata. A aparente cordialidade de Alberto não escondia seu espírito inquisidor, nem sua aguçada crueldade. Seus olhos demonstravam com clareza seu caráter. Também tudo que seria capaz de fazer para conseguir seus intentos. Na realidade Alberto transpirava o mal. Era impossível permanecer descontraído em sua presença. Sua própria elegância afetada, envergando sempre a farda estalando de engomada. As botas de montaria, detalhe essencial em sua indumentária , mesmo que raramente cavalgasse, permanentemente engraxadas, como a destacar a autoridade que lhe era conferida. Autoridade que lhe permitia cometer impunemente qualquer desmando. Botas que já haviam fraturado dezenas de costelas, fraturado algumas mandíbulas, sempre instrumentos de dor e tortura. Era como se a violência que delas emanava alimentasse sua satisfação interior e realização pessoal. Nada mais lhe agradava tanto. Mesmo o prazer do sexo, somente se completava com sádicas estratégias. Suas mulheres eram escolhidas por aceitarem manter relações sexuais, onde o espancamento era parte obrigatória. Exatamente por isso, nunca conseguira constituir uma família. Também não sentia falta desses laços. Nem mesmo manter qualquer relacionamento estável. Mantinha-se só. Como só atravessara toda a sua infância e adolescência. Nascera em Carlos Barbosa, em plena Serra Gaúcha, filho do intransigente Remy Cremona Este chegara ao Brasil, como imigrante alguns meses após a queda de Mussolini. Dizia-se na cidade, que viera fugido da Itália, escapando do destino reservado aos líderes camisas-pretas do fascismo. Olhos miúdos de cor acastanhada, cabelos escuros, lisos e já ralos, emoldurando um rosto magro e sulcado. Chegara ao Brasil viúvo. A esposa morrera na travessia e não conhecera o porto de Santos. Ninguém soube como aquele carcamano silencioso chegou ao Sul do país. Também como sem dificuldades conseguiu emprego na principal empresa da cidade, a Tramontina. Um ano depois estava casado com Ana. Discreta e quase bonita, treze anos mais jovem, de estrutura frágil, na primeira gravidez deu à luz a um natimorto. Remy, sempre taciturno, conseguiu progredir profissionalmente, embora não gozasse da estima de seus compatriotas. Inúmeros na região. Que começavam a construir uma colônia volumosa, procurando preservar a cultura rural e vinícola, oriunda dos vinhedos da Itália. Dois anos após Ana morria durante o parto. Dela, porém, ficara como lembrança o recém-nascido Alberto. Que para o pai nada mais era que um transtorno. Logo cedo o menino se reconheceu órfão de pai vivo. Vivo e sob suspeita de um passado excuso. À medida que o tempo passava, mais pai e filho se tornavam estranhos no ninho, que Remy escolhera para viver. E tentar enterrar o seu passado. Um relacionamento tormentoso fez com que Alberto fosse criado sem conhecer qualquer forma de afeto. Muito pelo contrário. Sua educação formal baseou-se no reconhecimento do certo e do errado, sempre às custas do silêncio absoluto ou de uma bofetada. Aprendeu a apanhar em silêncio. Aprendeu a odiar também silenciosamente. Na idade certa, alistou-se no exército, servindo no destacamento de cavalaria próximo a Dom Pedrito. Fez do serviço militar sua profissão e sua família.Sua única perspectiva de vida. Alberto acordou no meio da noite. A cabeça latejando. Intensamente. Como já vinha ocorrendo há alguns meses. Crises de dor, iniciadas repentinamente, e durando às vezes horas ou dias. Uma pressão contínua nos olhos, como se estivessem sendo arrancados. Sabia que alguma coisa não estava correndo bem. E pela primeira vez na vida teria que pedir auxíllio. Sempre detestara médicos. Por tudo que eles representavam. Por toda a esperança que transmitiam aos necessitados. Ganhavam a vida vendendo ilusões. De uma vida melhor. Sem sofrimento. Ou de uma morte mais digna. Como se houvesse dignidade na vida ou na morte. Em toda sua vida aprendera que para viver tinha que ser cada vez mais duro. Implacável. Para com os outros e também para si mesmo. A vida era para o mais forte. Os fracos nada mereciam. Serviam apenas para o tacão de suas botas. Como aquele verme miserável do engenheiro. Servia-se dele, usufruindo de cada gemido arrancado, de cada convulsão provocada pela dor da tortura. Uma vez, em pleno Araguaia, certa noite ele lhe escapara sorrateiramente. Como que arrependido por ter-lhe servido como delator. Dedurava por covardia seus companheiros de guerrilha. Por medo da dor e da tortura. Até que um dia desaparecera na noite, sem deixar vestígios. Mas a vida sempre é uma caixa de surpresas. Muito depois, já quando servia em Campo Grande, ao conter uma passeata na Avenida Afonso Pena, Sérgio surgira-lhe do nada, repentinamente, procurando defender a vaca comunista que distribuía panfletos e entoava gritos de ordem. Ainda sentia o prazer imenso de ter marcado a chicote aquela face de fuinha. E no auge de sua paixão, vendo o sangue escorrer da face assustada, eis que surge para contê-lo Sérgio, o rastejante objeto de sua raiva incontida. O filhinho de papai, que desiludido da vida, ousara brincar de se opor ao governo militar, tentando agir como um verdadeiro homem e participar da guerrilha do Araguaia. Mas era como na conhecida fábula do escorpião e do sapo. A natureza malévola do escorpião fazia com que sua cauda picasse o dorso do sapo que o transportava, atravessando um rio. Por instinto o escorpião matava o sapo, mesmo sabendo que assim ele próprio estaria se afogando. Da mesma forma que o instinto de Sérgio jamais o deixaria agir como um homem de verdade. Nas últimas semanas tinha-se dedicado com especial atenção àquele farrapo humano, ensinando-lhe que a dor tem muitas faces. Surpreendentemente não tinha conseguido extrair mais nada. Apenas em meio ao torpor que antecedia o desfalecimento total, Sérgio deixava soltas frases desconexas. Como vindos do inconsciente, nomes daqueles que pareciam ter sido de colegas da universidade. Repetidas vezes surgiam nomes como Glória, Léo e Lívia. Sem sobrenomes. Não conseguira nenhum registro deles nos arquivos do serviço secreto. E Sérgio como que bloqueava qualquer lembrança que pudesse desatar o fio dessa meada. Por mais martirizante que fossem as técnicas de tortura nele aplicadas. E estas eram tão engenhosas`quanto martirizantes. Agora essa dor. Inexplicável. Já quase não sentia prazer em torturar quem quer que fosse. Nem mesmo Sérgio. Também já há semanas não espancava nenhuma das piranhas, que terminavam as sessões de sexo brutalizadas. Castigadas por toda a sua devassidão e promiscuidade. Os seus próprios comandados já começavam a perceber quando a dor, de tão intensa, tirava-lhe o controle da situação. E intimamente se regozijavam com aqueles momentos de fraqueza. Alguma providência deveria ser tomada. Caso contrário, em breve seus superiores estariam retirando todo o apoio aos seus desmandos e crises de humor. Não poderia se ausentar sob pena de perder o seu comando. Procurou ser atendido pelos médicos locais. Não demorou para ser encaminhado a Leo. O melhor especialista da região. Justamente o almofadinha que, por motivos ainda não inteiramente esclarecidos, era citado por Sérgio, em suas mais dolorosas sessões de tortura. Era quase humilhante ter que submeter ao tratamento proposto pelo médico. Uma qualidade de homem desprezível. Sensível e competente. Muito diferente de seu jeito de ser. Truculento, machista e homem por inteiro. Assim Alberto, após muitas semanas procurou o médico. Sempre mantendo sua arrogância e desprezo pelo próximo. Léo procurava atender com atenção o militar. Que também aprendera a desprezar. Principalmente depois que Lívia o identificara como seu agressor. Depois havia ainda toda a fama grangeada por Alberto, como autoridade corrupta e implacável. Torturador, sem princípios. Agora ali, sentado em sua frente, na clínica, procurava disfarçar seu constrangimento em ser examinado pelo médico. Em responder às suas perguntas. Que lhe revelavam sua intimidade excusa.