sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

II. A DOR COMO INSTRUMENTO DE CRIAÇÃO ELEVANDO O ESPÍRITO HUMANO

A dor física, embora até também possa ser causa da dor espiritual, dela difere pelo imediatismo de suas conseqüências.

Assim, enquanto a dor aguda é um sinal de alerta contra uma agressão externa ou interna, a dor crônica é um sintoma complexo e contraditório, de difícil conceituação e ainda mais difícil interpretação. Até instrumento de uma escalada social, cultural e espiritual.

A dor crônica pode revelada, dificilmente referida de modo adequado por pacientes que até mesmo nada apresentem como causa que a justifique. Principalmente a dor crônica sem causa orgânica. O conceito de memória da dor traz ainda maior variabilidade na interpretação e reconhecimento desse sintoma.

O sofrimento é um sentimento cuja força é intensa e indelével, uma vez que as grandes alegrias são mais facilmente esquecidas que as grandes perdas, causadoras de marcante tristeza.

Por outro lado, são os momentos de grandes aflições os que mais impulsionam o crescimento do homem e sua obra material e espiritual. Isto é flagrante na arte. A arte imita a vida.

A dor crônica geralmente influencia o artista e sua obra. Já a arte pode auxiliar o artista a compreender e a conviver com sua dor.

Um dos momentos de maior criatividade artística do homem foi a pintura do teto da Capela Sistina do Vaticano, por Michelangelo Buonarroti, exatamente em uma fase atormentada de sua vida, marcada por grandes explosões temperamentais e torturantes crises de gota. A pintura da capela Sistina foi obra encomendada pelo papa Júlio II, também de temperamento irrascível. O embate psicológico entre o papa e o artista, que teve nesta sua única obra de vulto como pintor, resultou, entretanto, em uma obra prima da pintura mundial.

Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni (1475 —1564), foi um artista completo: pintor, escultor, poeta e arquiteto italiano, considerado um dos maiores criadores da história da arte do ocidente. Teve uma vida pessoal arrebatadamente tormentosa e desequilibrada, marcada por sentimentos desencontrados, dor, decepção e inquietude espiritual.Toda essa tempestade de sentimentos foi magnificamente imortalizada nos traços fortes e relevos demasiadamente humanizados de suas majestosas esculturas: La pietá, o David, Moisés, Lo schiavo, dentre outras.

Tendo seu talento logo reconhecido, tornou-se um protegido dos Medicis, para quem realizou várias obras. Depois fixou-se em Roma, onde deixou a maior parte de suas obras mais representativas. Seu estilo caracterizou-se por assimilar as influências da Antiguidade Clássica, dos primórdios do Renascimento, dos ideais do Humanismo e do Neoplatonismo. Representou como ninguém a figura humana, centrado em especial no nu masculino, que retratou com força indescritível, e surpreendente conhecimento de anatomia.

Como arquiteto, projetou além de vários edifícios a cúpula da Basílica de São Pedro, tendo também remodelado a praça do Capitólio romano. Sua genialidade permitiu-lhe também destacar-se na poesia, chegando a escrever poemas diversificados e de muita sensibilidade.


No Brasil, Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, padecia de uma doença crônica incapacitante ( esclerose sistêmica? hanseníase ? porfiria cutânea tarda ?), que o segregava socialmente e lhe causava infinita dor física e espiritual. Em compensação exatamente na fase mais crucial de sua vida, produziu a mais legítima expressão da arte sacra no Brasil, obra devota, belíssima e resignada.

Seu um estilo barroco, relacionado ao rococó, revela o maior expoente da arte colonial em Minas Gerais e no Brasil. Toda sua obra foi realizada nas cidades de Ouro Preto, Sabará, São João del Rei e Congonhas do Campo. Suas principais obras podem ser visitadas na Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto e no Santuário do Bom Jesus de Matosinhos.

Já Francisco de Goya y Lucientes( 1746-1828) na Espanha refletiu em sua pintura a dor espiritual causada por uma enfermidade desconhecida adquirida aos 46 anos, ficando temporariamente paralítico, parcialmente cego e totalmente surdo.

Com a doença, perdeu sua vivacidade, seu dinamismo, sua autoconfiança. A alegria e a iluminação que caracterizavam a primeira fase de sua pintura, desapareceram lentamente, à medida que a doença o consumia. Em suas pinturas as cores se tornaram mais escuras e seu modo de pintar ficou mais livre e expressivo. Seus fortes e coloridos contornos, representando a vida diária do ingênuo camponês espanhol, passaram com o desenvolvimento da doença a evoluir para os trágicos traços de sua fase negra, densa, melancólica e cruel

Edvard Munch (1863-1944) começou a pintar aos 17 anos, depois que sua mãe e irmã morreram de tuberculose. Outras tragédias se seguiram com a morte de outros familiares e a internação de uma irmã de 30 anos em um sanatório. O resultado foi uma arte também trágica, na qual sua mais famosa obra – O Grito – mistura dor e desespero em tons também marcantemente trágicos. A obra representa uma figura andrógina num momento de profunda angústia e desespero existencial. O pano de fundo é a doca de Oslofjord (em Oslo) ao pôr-do-Sol. É considerado uma das obras mais importantes do movimento expressionista. Estado de alma semelhante acompanhou o autor durante longos anos de sua vida.

Henri de Toulouse Lautrec (1864-1901), acometido por uma doença óssea rara – a picnodisostose - após repetidas fraturas mal consolidadas, que levaram à deformidades físicas, chegou à idade adulta com 1m37cm de altura. Segregado socialmente e humilhado pela sociedade hedonista da época, buscou a companhia de outros excluídos, retratando-os em sua arte, através de figuras marginais da noite parisiense - desocupados, jogadores, bailarinas, artistas de circo, bêbados e prostitutas.


A monumental e inicialmente rejeitada arte de Vincent van Gogh (1853-1890), repleta de traços vigorosos, reflexos da inquietude de uma alma, sem perspectiva de vida que não o fogo da paixão interior que o consumia, atitudes instáveis e incoerentes à luz dos costumes da época, resultaram em uma obra angustiada, insana e eventualmente quase violenta.

Sua vida foi marcada por fracassos. Ele falhou em todos os aspectos importantes para o seu mundo, em sua época. Foi incapaz de constituir família, custear a própria subsistência ou até mesmo manter contactos sociais. Alma atormentada, acometido por frequentes períodos de depressão, aos 37 anos, consumido pela doença mental, suicidou-se, deixando um legado artístico inigualável.


Pierre-Auguste Renoir ( 1841 —1919), um dos mais importantes nomes do movimento impressionista, teve sua obra influenciada pelo sensualismo, pela elegância e delicadeza do estilo rococó. Dentre suas obras uma das mais famosa é o Baile do Moulin de la Galete.
Os últimos 20 anos de vida, Renoir foram marcados por dor contínua e persistente, devido a uma grave forma de artrite reumatóide que o acometeu, limitando consideravelmente sua qualidade de vida. Mesmo assim o artista continuou pintando.
Com a progressiva dificuldade em manejar os pincéis, acabou tendo que amarrá-los às mãos. Com o intuito de buscar outras formas de poder expressar seu espírito criativo, dedicou-se também à modelagem e à escultura, entretento, para isso tendo de contar com o auxílio de dois assistentes Richard Gieino e Louis Morel

Jackson Pollock (1912-1956) refletiu a instabilidade da vida pessoal, dolorosamente consumida pelo alcoolismo, em um universo de traços e pingos luminosos, compondo no caos de imagens aleatórias uma revolução artística, impulsionada obsessivamente por uma alma doente, de dor crônica infinita.
Desenvolveu uma técnica de pintura, criada por Max Ernst, o 'dripping' (gotejamento), na qual respingava a tinta sobre suas imensas telas; os pingos escorriam formando traços harmoniosos e pareciam entrelaçar-se na superfície da tela.


Já a saúde débil de Amedeo Modigliani (1884-1920) foi retratada em pinturas, onde pescoços alongados eram encimados por rostos sem alegria e olhos mortiços em tons de azul e cinza. Refletindo toda a angustia da dor que lhe consumia a alma.

Frida Khalo (1907-1954), mexicana, acometida por poliomielite aos seis anos, sendo esta a primeira de uma série de doenças, acidentes, lesões e operações que sofreu ao longo de sua vida.

Evoluiu com abortos de repetição e amputações de extremidades (síndrome do anticorpo antifosfolípide?). Sua pintura de traços fortes e coloridos foi-se modificando ao longo de sua curta e atormentada vida. Dor física, acompanhada pelos fortes e controversos sentimentos causados pelo marido, Diego Rivera, também pintor, instigaram-na a produzir uma obra bem representativa dos também tumultuados momentos da história do Mexico.

Dotada de um espírito indômito, refletiu toda a ironia e a dor causada pelos seus males físicos em figuras de cores vivas e trágicas. Sua obra Coluna Partida retrata fielmente o conceito atual de dor crônica funcional – a Fibromialgia.

A esclerose sistêmica é uma doença progressiva, incapacitante e extremamente cruel, porque, além induzir incapacidade progressiva e apresentar desfecho ainda inexorável, promove uma estigmatização estética que segrega também socialmente o paciente por ela acometido.


Paul Klee ( 1879 —1940) acometido pela doença produziu uma obra artística que se transformou radicalmente, à medida que a enfermidade evoluía. Seu desenho de traços firmes e personalísticos, com extrema riqueza de cores, demonstra a influência de várias tendências artísticas diferentes, incluindo o expressionismo, cubismo, orientalismo e surrealismo. Dotada de uma perspectiva por vezes infantil sua pintura representa fielmente sua vida pessoal.

Demitido de sua condição de professor da Academia de Finas Artes de Dusseldorf, em conseqüência da rejeição de sua arte, considerada degenerada, exilou-se em Berna, onde suas pinturas, avançadas para sua época, também inicialmente foram mal interpretadas. Atualmente é considerado um dos maiores mestres de seu tempo,tendo deixado um patrimônio de aproximadamente nove mil obras de arte.


Na música o mesmo cenário se repete, como se a angústia e as dores da alma impulsionassem os diferentes autores a produzir obras imortais.

Franz Liszt (1811-1886) e sua devoção religiosa extremada, como a se penitenciar pela inquietude da alma e da vida pregressa. Intérprete de grande técnica e musicalidade,um dos maiores pianistas de todos, importante compositor,tornou-se benfeitor de várioso outros músicos da época : Chopin , Richard Wagner, Hector Berlioz, Camille Saint-Saëns, Edvard Grieg e Alexander Borodin. Percorreu todas as cortes da Europa,tendo recebido todas as honras destinadas aos grandes artistas.Morreu aos 74 anos após uma pneumonia contraída durante um festival de musica em Bayreuth.


Frederic Chopin ( 1810-1849 ), alma arrebatada e patriota, consumida pelos amores e desvarios trazidos por caminhos tortuosos. Pianista polones e um dos maiores compositores piano da era romântica. É amplamente conhecido dos pianistas mais importantes da história.[] Sua técnica refinada e sua elaboração harmônica vêm sendo comparadas historicamente com as de outros gênios da música, como Mozart e Beethoven, assim como sua duradoura influência na música até os dias de hoje.


Richard Wagner (1813-1883), segregacionista atormentado, criando as raízes da eugenia hitlerista. Compositor, maestro, teórico musical, ensaista e poeta alemão, considerado um dos expoentes do romantismo e dos mais influentes compositores de música erudita já surgidos. Responsável por inúmeras inovações para a música, tanto em termos de composição quanto em termos de orquestração. Como compositor de óperas, criou um novo estilo, grandioso, cuja influência sobre a música da época e posterior foi forte. Como poeta, escreveu o libreto de todas as suas óperas.


Ludwig van Beethoven (1770-1827), misógeno, precocemente acometido por Doença Óssea de Paget que terminou por deixá-lo surdo. Apesar de tudo deixou uma obra monumental, cujas grandes expressões foram compostas, quando a doença já lhe deixara auditivamente incapacitado. Compositor alemão, do período de transição entre o Classicismo (século XVIII) e o Romantismo (século XIX). Desenvolveu a linguagem e o conteúdo musical, sendo um dos compositores mais respeitados e mais influentes de todos os tempos. Pregava liberdade política, a liberdade artística do indivíduo, sua liberdade de escolha, de credo e a liberdade individual em todos os aspectos da vida.

Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) , talvez o mais reconhecido por sua genialidade e extrema leveza e harmonia de sua obra musical. Compositor prolífico e influente do período clássico, autor de mais de 600 obras - tidas como referências da música sinfônica, de concerto, operística, coral, pianística e de câmara.

Mozart mostrou uma habilidade prodigiosa desde a infância. Precocemente revelado, reconhecido e consagrado, também o mais precocemente acometido pela ansiedade, insegurança e alma doentia. Ao longo de sua vida, conquistou fama, porém pouca estabilidade financeira. Seus últimos anos na cidade de Viena produziram algumas de suas sinfonias, concertos e óperas mais conhecidas, além de seu Requiem. Também precoce e tragicamente desaparecido, terminando sua vida miseravelmente só e enterrado em uma vala comum – uma vida apaixonada e incompreendida. As circunstâncias de sua morte prematura foram assunto de diversas histórias e lendas.


Gustav Mahler ( 1860-1911) um dos mais conhecidos regentes austríacos e um dos maiores compositores de sua época, lembrado por ligar a música do século XIX com o período moderno, e por suas grandes sinfonias e ciclo de canções sinfônicas, como, por exemplo, Das Lied von der Erde (A Canção da Terra). Suas obras são geralmente extensas. Prodcurou romper os limites da tonalidade, mantendo na maioria de suas obras um caráter sombrio, algumas vezes ligado ao funesto. Certamente relacionado a seus períodos de angustiada depressão.



Na literatura as figuras imortais também foram forjadas pelas dores da alma e a rejeição inicial de seus pares. As obras literárias mais editadas universalmente depois da Biblia são Dom Quixote de La Mancha, Os Lusíadas e Les miserables.

Miguel de Cervantes e Saavedra, poeta, soldado, sempre teve uma vida de sacrifícios físicos e morais. Caturado por piratas sarracenos viveu anos como escravo. Libertado, retorna à Espanha onde sua obra literária atrai a inveja de seu concorrente, poeta da corte, Lope de Vega que trama sua desgraça e seu encarceramento. Mesmo assim toda a alma da Espanha encontra-se retratada fielmente na figura do esquálido, indômito e generoso Dom Quixote, o Cavaleiro da Triste Figura, sempre disposto a mover céus e terras para defender o próximo e combater o Mal, ainda que este seja representado por dragões e moinhos de vento. Inconscientemente Cervantes retrata em seu personagem sua própria vida e convicções.


Luis Vaz de Camões, também poeta e soldado, compõe seu poema épico Os Lusíadas, narrando toda a epopéia da formação da nação portuguesa durante as grandes navegações, qua acabaram franqueando à Europa regiões como a África a Ásia e as Américas. Alma ardente e apaixonada, Camões igualmente teve uma vida de perdas e sacrifícios. Ferido no olho por uma flexa durante uma batalha, soçobrou em um naufrágio, dele escapando com a roupa do corpo e salvando também o manuscrito de sua maior obra. Alternando momentos de paixão extremada e penúria, sua alma inquieta e sofrida representa igualmente o ardor e bravura dos navegadores portuguese ( As armas e os barões assinalados, / que da ocidental praia lusitana, / por mares nunca dantes navegados,/ passaram inda além da Taprobana. / E em perigos e glórias esforçados, / mais do que prometia a força humana, / entre gente remota edificaram / novo reino que tanto sublimaram./ )

Victor Hugo fez dos Miserables a mais pungente elegia ao perdão e ao amor ao próximo, resgatando os melhores valores humanos. A personificação maniqueísta do Bem – na figura de Jean Valjean e do Mal –o implacável e obstinado Inspetor Javert compõe um cenário imortal.

Sua vida pessoal marcou muito toda a sua obra. Casou-se com uma mulher por quem seu irmão era apaixonado. Em decorrência disso, Eugène, o irmão, enloquece e é internado em um hospício. No ano seguinte enfrentou a morte do primeiro filho e o fracasso literário do livro Hans da Islândia, que não agrada a crítica.

Em 1831 lança seu grande romance histórico, Notre-Dame de Paris, definindo a forma de exploração ficcional do passado que marcou o romantismo francês. O livro narra a história do amor impossível do sineiro corcunda da catedral de Notre Dame de Paris, Quasímodo, pela bailarina cigana Esmeralda e as tramas de ciúme e rancor de Claudio Frollo, o diácono da Notre Dame.

Exila-se após o golpe de estado de 2 de dezembro de 1851, passando a viver em exílio em Jersey, Guernsey e Bruxelas, onde sua alma inquita padeceu as agruras da solidão e do desterro.

Propõe uma chamada à liberação das restrições que impunham as tradições do classicismo, compondo o maior manifesto do movimento romântico na literatura francesa. Justifica a necessidade de romper com as amarras e restrições do formalismo clássico para poder então refletir a extensão plena da natureza humana.


A história da arte, em suas várias épocas, sempre demonstrou que as grandes produções e também as mais diferentes formas de criatividade, muito frequentemente estiveram associadas ao sofrimento mais moral do que físico do artista, seja na pintura, na música, na escultura – as mais grandiosas expressões do espírito humano.

Assim, compreende-se que vencer a dor crônica,significa muito mais que tratar a doença ou sua condição determinante. Superar as dores da alma pode engrandecer o espírito humano. Abrir o portal de um novo horizonte, construir um futuro melhor. Forjar as razões e as raízes de uma vida futura.

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