quinta-feira, 12 de julho de 2012

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 18) FORMOSO 2000

Na pequena Formoso, lugarejo que, palmilhando o futuro, avançava sempre como um caranguejo, retrocedendo a cada passo, o sol brilhava a pino no céu azul, ao pé da serra. O cemitério acanhado mal continha a dezena de pessoas, que devotadamente acompanhavam o sepultamento. Glória, apoiada no braço de Rodolfo, mal prestava atenção às palavras do pároco encarregado do serviço religioso. Era a segunda vez que visitava aquele local. A primeira quatro anos atrás, quando Sérgio morrera, subitamente. Agora lá estava com os amigos, para a última despedida a Leo. Olhando para a copa da velha árvore, cuja sombra se projetava na sepultura aberta na terra avermelhada, relembrava as imagens mais fortes de Leo retidas em seu coração. O amigo que em todas as oportunidades fizera de sua própria vida um instrumento para aliviar o sofrimento alheio. Infelizmente na melhor fase de sua vida convivera muito pouco com o amigo. Separaram-se logo após a festa de fim de ano de 1968. Em seguida tinha iniciado sua vida em Paris, e não soubera mais dele. Nos anos da ditadura tinha se apresentado como o amigo fiel e protetor, amparando Lívia e Sérgio. Mesmo após o reencontro com Sérgio, Leo se mantivera afastado de seus antigos colegas de universidade. Depois vieram os anos de trabalho na Somália. Onde construira uma vida de abnegação, prestando serviços aos que mais necessitavam. Nunca constituira familia. Seu companheiro fiel durante anos tinha sido Sérgio. Este, ao morrer em Campo Grande há quatro anos atrás, deixara recomendações para que fosse enterrado junto a Leo, em Formoso. Porque era o afeto que mais prezara em toda a sua vida. Agora, lado a lado, os amigos finalmente se reuniam pela última vez. Os olhos marejados de Glória repassaram os presentes. Lívia, Tiago e a filha, enfim reunidos, e procurando viver felizes. Infinitamente gratos a Leo. Analucia e Dora, ainda mantendo uma relação estável, mantinham a pousada em Formoso, explorando o ecoturismo. Em silêncio prestavam a última homenagem ao irmão que, apesar da pouca convivência, tinham aprendido a amar cada vez mais., Roodolfo apertava-lhe a mão carinhosamente, transmitindo-lhe conforto e segurança. De todos era quem mais de perto tinha acompanhado a vida de Leo fora do Brasil, principalmente a fase da Somália. Aprendera a respeitar profundamente as convicções do amigo. Também a resgatar a história de seus passos, para construir um exemplo de vida e dedicação. Digno de ser transmitido às futuras gerações. E ela, Glória. Com uma história de vida também tumultuada. Mas com a oportunidade de ter sido beneficiada com uma experiência profissional rica em sentimentos, que lhe permitiram conhecer melhor o comportamento humano. Sua extrema dedicação ao jovem Gerard. O convívio com Armand e Amélie. Sua luta para proporcionar à filha de seu coração uma vida feliz, com dignidade e muito amor. Agora, nos últimos anos, compartilhando sua vida com Rodolfo, que a despertara para o recomeço de novas emoções. E que lhe abrira mais ainda o reconhecimento dos caminhos trilhados por Leo. Este entrara em sua vida como o jovem tímido e introspectivo, de sexualidade mal definida. Que acabara sendo despertada finalmente por ela. E também por ela mesmo sepultada na noite marcante do final do ano de 1968, quando sucumbira desatinada e instintivamente ao descontrole de suas emoções. Com o passar dos anos aprendera a se perdoar. As conseqüências daqueles momentos de irrefletido abandono, subjugada pelo ardor inconseqüente de Sérgio, causaram a separação dos jovens amigos, que passaram a trilhar caminhos diametralmente opostos. O altruísmo de Leo fez com que o fio do destino complacentemente realinhavasse as vidas de todos eles, reunindo-os apesar de todos os desencontros. Mantendo-os amparados pela figura tutelar do amigo, sempre presente nos momentos de maior necessidade. Por trás de Glória, o sol projetava a sombra dos amigos presentes, agora unidos e finalmente felizes. Essa sombra única se prolongava cobrindo suavemente a singela sepultura... Reunindo em uma só imagem, pelo milagre da sombra, mais uma vez, aqueles que aprenderam que os caminhos da vida somente tem sentido se forem percorridos em companhia de quem se ama.-

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 17) SÃO PAULO 1996

Ele atravessou o portão de embarque com segurança e determinação. Até com certo alívio. Nem mesmo a bengala, que usava para compensar a visão limitada, o atrapalhava. O terno bem assentado e os sapatos impecavelmente engraxados demonstravam ainda uma situação econômica confortável. Também vaidade e até um ar de arrrogância. O aeroporto de Congonhas, acanhado e insuficiente para a demanda dos vôos domésticos, naquela manhã de outubro, mostrava todo o desconforto causado pelas longas filas e salas de embarque com lotação acima da prevista. Chegar ao aeroporto já se constituíra em um sacrifício, decorrente do pesado tráfico da cidade de São Paulo. Nunca a expressão selva de pedra fora tão bem aplicada. As ruas simplesmente entupidas. As rotas de acesso com um fluxo lento demais. A combustão dos motores poluía massacrantemente a manhã luminosa. Aquele vôo tinha sido uma solução inesperada para a urgência que o acometia. Voltar a Campo Grande não o agradava. Um cortejo de memórias teimava em resgatar o passado, que volta e meia retornava, cobrando os juros de uma dívida sem resgate. Espectros o assediavam cada vez mais frequentemente. Uma sucessão de rostos contorcidos perturbava-o sem piedade, trazendo-lhe noites de insônia. Ele,que nunca soubera o significado dessas palavras - piedade e insônia – agora passava noites sem dormir. Pesadelos e fantasmas que ele mesmo tinha criado. Todos os detalhes de sua vida pregressa como caçador de homens e torturador passavam e repassavam em sua mente. Com destaque para todos os requintes de crueldade e perversões, nos quais sempre fora mestre. Agora, quando a noite caía, começava seu maior pesadelo. Continuar vivo. Uma pontada aguda na cabeça trouxe-o à realidade. Continuar vivo significava conviver com a dor e a limitação visual, que há anos o acometia. Tivera sua carreira militar e política interrompida pela enfermidade. Que o colocava sempre em uma condição de vulnerabilidade e insegurança. A viagem aos Estados Unidos e o tratamento lá desenvolvido tinham sido quase um fracasso. Embora tivesse conseguido conter o curso da enfermidade, e assim evitado a cegueira total, ficara ainda com as dores e uma acentuada diminuição na acuidade visual. Entretanto, acima de tudo, uma absoluta sensação de ter sido ludibriado. O que lhe aumentava mais ainda o rancor e o ódio que lhe consumiam as entranhas. Não conseguia esquecer que sua condição atual se deveu ao tempo perdido na perseguição a Sérgio e Leo. Os dois ainda continuavam vivos, e o assombravam. Tomando conta de todos os seus dias. Sempre presentes em todas as situações, como que para recordá-lo permanentemente de sua humilhante derrota. Ele, um dos mais persistentes caçadores dos guerilheiros do Araguaia, ter sido passado para trás por um renegado que mal se aguentava sobre as pernas e um médico almofadinha do interior. Depois de quase tê-los apanhado, quando se refugiaram na pousada da irmã de Leo, perdera a pista dos fugitivos no aeroporto do Galeão, onde supostamente haviam embarcado para Lisboa. Supostamente, porque nunca as autoridades portuguesas confirmaram a presença de qualquer brasileiro que se assemelhasse à descrição física de leo e Sérgio, enviadas pela polícia do exército. Mesmo após sua volta dos Estados Unidos, e após ter sido reformado, abandonando sua privilegiada posição no exército, em função de suas condições físicas, Alberto jamais deixara de procurar os dois fugitivos. Obsessivamente. Tinha pessoalmente vasculhado os arquivos da polícia portuguesa, verificando a entrada de brasileiros no país. Sem qualquer resultado. No Brasil, não havia se deparado em todos os últimos anos com qualquer pista. Era como se os dois tivessem sido tragados pela terra. Depois promulgaram a Lei da Anistia. E com ela Alberto perdeu toda e qualquer possibilidade de, oficialmente, lavar sua honra. Até que, no último fim de semana os jornais trouxeram uma nota de rodapé na coluna policial. Em Campo Grande o encontro do corpo de provavelmente um dos sobreviventes da guerrilha do Araguaia, despertaram sua atenção. Sérgio fora encontrado morto, dentro de seu Vectra prata. Sem causa aparente. Sem vestígios de violência. Sobre os joelhos uma pasta de documentos semi-aberta. O conteúdo intrigante, reminiscências de uma época infeliz, de repressão e brutalidade. Fotos antigas, algumas da época da guerrilha do Araguaia, uma carta endereçada ao seu herdeiro legal, em caso de sua morte, documentos e cem mil dólares americanos. Em letras de câmbio beneficiando um tal Leopoldo Augusto dos Anjos. Um passaporte presumivelmente falso de procedência chilena. Também uma carta endereçada a Leo. Estava voltando. Talvez agora pudesse definitivamente acertar suas contas com Leo e Sérgio. Estava disposto a ir às ùltimas consequências. Instintivamente pensou em sua pistola automática, despachada em sua bagagem. O doce sabor da vingança. Afinal a vitória, após todos os anos de frustração e procura. A vingança é um prato que se come frio, diz o ditado. E certamente ele iria degustá-la com infinito prazer. E havia também a possibilidade das fotos comprometedoras, que poderiam ainda trazer-lhe graves problemas. As mesmas fotos que o incriminavam quando recebeu a maleta de dólares em Campo Grande, na noite do resgate de Sérgio. O Fokker 100 da TAM arrancou na pista sem atraso, às 08h26, e decolou como se carregasse o mundo na fuselagem. Na realidade eram noventa e seis passageiros a bordo. A cidade de São Paulo abaixo, distanciando-se aos poucos, mostrava sua floresta de edifícios, cinzentos e irregulares. Sem definição de horizontes, apenas o casario interminável. Serpentes de veículos cruzavam as ruas tornando o deslocamento urbano insuportável nas horas de maior fluxo. Fechando os olhos, deixou-se embalar pelas lembranças,tentando relaxar. Não conseguiu. Nem iria mais. Sem qualquer aviso prévio, em segundos o avião perdeu altura, inclinou-se para a direita e resvalou na cobertura de um prédio de três andares. Quase não ouviu o clamor dos passageiros. Não houve tempo. Batendo no telhado de outro prédio, já em chamas o avião se espatifou sobre oito casas na rua Luis Orsini de Castro, explodindo e incendiando catorze carros estacionados. O trabalho de resgate dos corpos durou sete horas, em meio a um cheiro insuportável de querosene, e uma poeira preta que dificultava a respiração. O fogo controlado deixava destroços, como se uma bomba tivesse caído sobre o quarteirão. Os vizinhos consternados se uniam voluntariamente aos bombeiros, policiais e paramédicos, na inútil procura por sobreviventes. Mais tarde a contagem de vítimas fatais chegaria a 99. A maior parte dos corpos, desfigurados e carbonizados, em sacos plásticos,foram empilhados no asfalto.Compondo uma cena de horror.

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 16) CAMPO GRANDE 1996

Sérgio levantou-se bem disposto naquela manhã. Havia muito tempo que Chico Alemão não mais aparecia em seu sono atormentado. Nesta noite regressara. Mas em condições muito diferentes. Não mais ferido e agonizante. Mas como o vira pela primeira vez, sorridente e com um vigoroso aperto de mão. Fora uma visão rápida e reconfortante. Tomara o café lendo o jornal, procurando nas notícias da manhã algo que o auxiliasse na tarefa que se impusera a fazer naquele dia. Algo que já deveria ter feito há tempos. Mas que fora deixando sem se aperceber que os dias correm mais rapidamente do que imaginamos. Apanhou uma pasta de documentos e sentou-se no sofá da sala. Eram o testemunho mudo de um passado com encontros e desencontros. Dor, resgate e honra recuperada. Fotos antigas e mais recentes recordavam-lhe os poucos amigos e momentos inesquecíveis. As diferentes fases de sua vida ali estavam representadas. Os amigos da universidade, companheiros da guerrilha, Leo e ele fotografados várias vezes na pousada de Analucia, no Chile e depois na África, quando serviram no Corpo de Paz da Organização das Nações Unidas. Deixou-se ficar algum tempo rememorando aqueles dias tão conturbados. Não fosse o apoio e a companhia de Leo, certamente não teria sobrevivido a todas aquelas situações. Além do apoio financeiro, Leo havia dedicado boa parte de sua vida a ampará-lo e a conduzí-lo para dias melhores. Agora deveria compensar toda a dedicação do amigo. Ao menos o investimento econômico. Já que o moral não teria nunca como retribuir. Acometido por repentina emoção, lembrou-se daquele fim de tarde especial na cafeteria do Cerro Santa Lúcia quando Lívia finalmente se reuniu a ele e a Leo. Sorrisos, lágrimas de alívio e confidências regadas a um bom vinho chileno estenderam-se noite a dentro. Planos para um futuro melhor. Após algumas semanas Lívia voou para Paris. Ao encontro de Glória, que tinha encontrado pistas que levariam ao paradeiro de Tiago. Em breve todos estariam reunidos, iniciando uma fase mais feliz de suas vidas. Já os dois amigos nada tinham programado para o futuro, que não fosse a recuperação total de Sérgio. Leo aproveitava esses dias de tranquilidade para ler ou pintar. A arquitetura típica do centro histórico de Santiago era uma motivação imperdível para o pintor de casarios. Não havia a menor oportunidade de retornar ao Brasil nos próximos anos. Também havia Alberto, provavelmente para executar qualquer vingança bem elaborada. As perspectivas de permanecerem em Santiago não eram atraentes. O regime totalitário implantado pelo golpe militar que levara ao poder o general Augusto Pinochet, cedo ou tarde iria se interessar por exilados políticos, principalmente brasileiros. Decidiram que também deveriam partir. Apenas não sabiam para onde. Talvez Paris. Mas também sem muito empenho. Talvez não estivessem preparados ainda para reencontrar o grupo de amigos dos tempos da universidade. Muito havia acontecido com todos, e as cicatrizes estavam ainda recentes. Todos necessitavam de um período de recuperação. A situação econômica de Leo era ainda muito confortável, o que permitia uma refletida liberdade de opções. Terminaram por escolher a Suiça, onde em Genève,Leo tinha contactos confiáveis. Também haveria maiores facilidades em gerenciar os dividendos de seu patrimônio. Os primeiros dias no novo exílio foram de reconhecimento. Comportaram-se como turistas descompromissados. Alugaram um pequeno apartamento próximo ao lago. Todas as manhãs exercitavam-se fazendo longas caminhadas pelo Promenade de Lac, usufruindo da dinâmica e magnífica presença do Jet d’Eau, símbolo vivo da cidade. Um jato de água projetando-se vertiginosamente para os céus, para cair em seguida formando uma cortina transparente de gotículas sobre a superfície calma do lago. Mais tarde sentavam-se nos bancos do Jardin des Anglais, vendo preguiçosamente os transeuntes, na maioria turistas, fazendo suas caminhadas e fotografando a coluna de água que se projetava sobre as águas escuras e sempre frias do lago. Eram horas de tranquilidade extrema, nas quais Sérgio procurava esquecer suas culpas e a dor da tortura. Leo pacientemente acompanhava o amigo, respeitando aqueles momentos de reflexão. Procurava também aos poucos direcionar seus objetivos de vida. Após alguns meses, quando quase já não suportava a inércia daquele período de recuperação, apresentou a Sérgio um projeto que lhe ocorrera recentemente. Disposto a não desperdiçar toda a sua formação profissional, e ante as dificuldades em exercer a Medicina na Europa, tinha resolvido alistar-se no Corpo de Paz das Nações Unidas. Prestaria assistência médica onde fosse designado. Provavelmente em algum lugar da África. Como não tinha família poderia viver ao menos construindo um futuro melhor. Auxiliando a melhorar a condição de vida de desabrigados e necessitados. Inicialmente amedrontado com a possibilidade de perder a companhia do amigo, aos poucos Sérgio foi também sendo seduzido pela idéia, que repentinamente também daria um novo rumo, uma nova perspectiva para sua vida. A possibilidade de servir ao próximo. Resgatar o idealismo dos verdes anos. Retribuir à vida, tudo que oela lhe havia oferecido de bom através de seus amigos. Principalmente através da dedicação incondicional de Leo. Que o havia resgatado da tortura e da morte,oferecendo-lhe a possibilidade de um novo recomêço. Não demorou muito e após alguns meses desembarcavam na África. A partir de 1980, a comunidade internacional descobriu-se atônita com a devastação, miséria e epidemia de fome que assolava a Somália e regiões vizinhas. A anarquia e o início da guerra entre clãs, buscando o poder e martirizando a população geraram a intervenção das Nações Unidas. A Somália por sua estratégica situação geográfica, constitui-se em uma opção de acesso ao Mar Vermelho, passando pelo Golfo de Aden. Sua capital Mogadiscio localiza-se às margens do Oceano Índico. A abertura do Canal de Suez em 1869 desde há muito chamava a atenção das potências internacionais para os vizinhos do Sul. As influências internacionais não foram suficientes para impedir que a Somália em 1982 mergulhasse em um cenário de absoluta miséria e banditismo, promovendo o êxodo de dois milhões de habitantes famintos. A Cruz Vermelha destinava um terço de seus recursos na época para a Somália, em parceria com outras vinte agências humanitárias internacionais. As violações dos direitos humanos, rotina na Somália devastada, embargavam novas formas de ajuda humanitária. Ainda havia o caos político acompanhado de seca, fome e epidemias. O solo árido não favorecia qualquer forma de agricultura. Com o tempo inúmeras facções e milícias armadas passaram a disputar o poder, massacrando impunemente a população. Este foi o cenário encontrado por Leo e Sérgio, certamente o maior desafio de suas vidas. Lançaram-se a ele de corpo e alma, esquecendo-se de si mesmos e de tudo quanto haviam passado anteriormente. Embora em agosto de 1979 as autoridades brasileiras tivessem decretado a Lei da Anistia, favorecendo todos os exilados políticos, e eximindo de culpas todos os participantes dos violentos acontecimentos dos anos de repressão, de ambas as partes, os dois amigos continuaram seu novo projeto de vida. Passaram-se mais de dez anos antes que Leo e Sérgio verificassem a necessidade de voltar para casa. Mesmo porque após tanto tempo ausentes, o conceito de lar e família até já tivesse outro significado. Voltar para onde? Procurar quem? Ambos estavam juntos também há muito tempo. Fortes laços os uniam desde a devotada escolha de Leo, abandonando uma vida já estabelecida para resgatar Sérgio, cuidando dele até sua recuperação total. Depois, aos poucos, um tornou-se a família do outro. E jamais surgiu a perspectiva de um relacionamento estável com qualquer mulher. Marcas do passado. Sentado no sofá naquela manhã em Campo Grande, relembrando todos os acontecimentos dos últimos anos, a fuga para Santiago, os meses em Genève e os longos anos de trabalho árduo na Somália, Sérgio sentia-se quase feliz. Afinal sua vida não fora inteiramente desperdiçada. Graças a Leo, recuperara a sua auto-estima e conseguira construir uma vida digna de trabalho, altruista e edificante. Tinha reunido amigos e não se sentia mais sozinho. Guardava,porém, um infinito sentido de gratidão para com o amigo, que devotara tantos anos à reconstrução de sua vida. Deixara temporariamente Leo para trás, voltando para Campo Grande, pois secretamente acalentava a idéia de compensar parcialmente o amigo por todo o investimento em seu resgate e recuperação física. Apanhando o dinheiro amealhado em todos os anos que antecederam sua captura, secretamente investido sob um nome falso, convertera a soma em cheques de viagem beneficiando a Leo. Colocara-os em uma pasta de couro, junto com algumas fotografias antigas da época da universidade, da ditadura e da guerrilha do Araguaia. Necessitava ir ao banco e alugar um cofre,em nome de Leo,para guardar todas aquelas lembranças. Pretendia surpreender agradavelmente o amigo. De novo, subitamente,aquela agulhada no antebraço esquerdo. Era a terceira vez nos últimos dois dias. Levantou-se, apanhou a chave do carro e saiu. O Vectra prata não chegou a arrancar. Sérgio, mal ligara a ignição, quando uma dor aguda percorreu-lhe todo o antebraço. Gotas de suor frio percorreram-lhe o rosto, e uma dor em aperto tirou-lhe o fôlego. A cabeça caiu pesadamente sobre o volante. A buzina passou a soar, como um lamento ruidoso e insuportável.

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 15) RIO DE JANEIRO 1996

RIO DE JANEIRO – 1996 Glória acordou devagar. Preguiçosamente. A cortina pesada, entreaberta, deixava entrar pela larga janela da cobertura em Ipanema raios de sol,que iuminavam e aqueciam o mar calmo naquela manhã de sábado. Sentia ainda na pele e nos lábios a sensação e o gosto dos beijos de Rodolfo. O tempo passava e cada vez mais curtiam sua vida a dois. Sem o poder da juventude, gostavam muito de sexo. E este os aproximava cada vez mais. E cada dia descobriam mais motivos para definir o gosto da felicidade. Viver juntos depois de tanto tempo de separação era mesmo a realização de um sonho. Ambos tinham trazido para a relação uma bagagem de vida extensa. Experiências fortes. Sonhos não realizados, amargura, desencantos e solidão. Mas também sucesso na vida profissional, respeito e admiração. Cada um mantinha ainda sua vida como médicos, de diferentes especialidades. Ele cuidando dos males do corpo. Ela tratando as dores da alma. Tinha sido um longo caminho desde o encontro inesperado no Deux Magots na distante Paris. Embora naquele momento suas vidas estivessem longe de se reunir, sem dúvida aquele fora um momento mágico. Sentimentos reavivados, em uma fase de melancólico desencanto para ambos, fizeram germinar um afeto latente. Que floresceu em repetidos encontros ao longo dos mses subsequentes, nos quais reaprenderam tudo sobre seus caminhos anteriores. Havia ainda então Amélie. A filha de seu coração. Tão querida e tão necessitada de seus cuidados. A enfermidade agora progredia mais rapidamente. Naqueles meses de angústia, apesar de toda a sua atenção, estava claro que em breve Amelie a deixaria. Ficaria novamente só. Acompanhada das lembranças de uma vida em seu apartamento na Rue Mouffetard. E quando isto realmente aconteceu decidiu voltar para o Brasil. Reiniciar uma nova vida. Rodolfo já havia voltado há mais de um ano. Reencontrara-se com ele no Rio de Janeiro. Com o tempo aprenderam a filtrar sua vidas anteriores, delas tirando tudo que pudesse contribuir positivamente para uma nova vida a dois. E lentamente, no momento em que se sentiram efetivamente livres de suas responsabilidades em relação ao passado, no momento adequado, iniciaram um novo caminho. Sempre há tempo para recomeçar. Vieram-lhe à lembrança outros momentos inesquecíveis vividos em Paris. A chegada de Lívia, vinda do Chile. A alegria do reencontro. As trágicas notícias de tudo quanto acontecera com Leo e Sérgio. De como ambos na desventura tinham se reencontrado, e de como a infinita generosidade de Leo tinha propiciado a Lívia e a Sérgio o reinício de uma vida nova. Segura e com esperança. Exatamente Leo, o que mais havia sido comprometido e até humilhado pelas circunstâncias do passado. Mesmo assim, ressurgira para resgatar os companheiros do sofrimento e da morte. Também inesquecível foi o encontro de Lívia com Tiago e a filha. Após anos de separação, as lágrimas entre sorrisos, prenunciavam um recomeço feliz. Compensando todos os sofrimentos anteriores. Levantou-se e entrou no banheiro da suíte, construído especialmente segundo suas recomendações. O vaso sanitário isolado, dois lavatórios lado a lado no mesmo tampo, o espelho largo e bem iluminado. Toalhas separadas, e artigos de toucador individualizados. O cesto para roupas sujas de vime branco. Pequenos detalhes que auxiliam a construir uma rotina íntima livre de irritações e constrangimentos menores. Sorrindo, lembrou-se subitamente do primeiro casamento. De como Armand era desastradamente distraído e descuidado. Esquecia de levantar a tampa do vaso sanitário e respingos de urina sempre ali ficavam. Levantavam-se ao mesmo tempo, e ele sempre lhe tomava a frente. Usava o lavatório e deixava para ela um espelho respingado e as toalhas já úmidas. De vez em quando até usava a escova de dentes errada. Jamais enxugava a pia após usá-la. O fio dental usado sempre largado na saboneteira. As roupas para lavar amontoadas no chão. Vestindo um robe de seda azul, cor predileta de Rodolfo, achou-o na cozinha preparando um café da manhã especial. Omelete com ervas, torradas aquecidas na manteiga e, em lugar de café, morangos e espumante gelado. Conversaram sobre amenidades e as notícias trazidas pelo jornal da manhã. Já estava tarde e o sol quase a pino desestimulava a habitual caminhada pela beira-mar. Estavam ainda programando o final de semana, quando o telefone tocou.Um chamado de Campo Grande que mudaria completamente aquele estado de espírito.

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 14) FIM DA LINHA

Santiago do Chile continuava uma das mais belas cidades do continente americano, rodeada pela cordilheira dos Andes. Além da sua proximidade com estações de esportes de inverno, vinícolas e belas praias, respira ainda cultura, representada por seus dois prêmios Nobel de Literatura, Gabriela Mistral e Pablo Neruda. Recém saída de um golpe militar que introduzira o governo totalitário do General Pinochet, um clima de insegurança dominava a cidade. Sentados em uma das mesinhas do Mercado Central, com vista para a movimentada Calle 21 de Mayo, Leo e Sérgio tomavam um encorpado vinho tinto chileno. A tarde caía preguiçosa, e os dois amigos se refaziam dos acontecimentos dos últimos dias. Comentavam sobre a persistência de Alberto e sua obsessão em capturá-los. De como finalmente haviam se desvencilhado dele em Parati. Graças a um estratagema cuidadosamente preparado por Leo e Lívia, deixando pistas sobre uma rota de fuga do Brasil, voando do Rio de Janeiro para Lisboa. Na realidade, nada disto ocorrera. Guiados pelo mateiro, acabaram chegando a Parati. Ali alugaram uma lancha Cobra de doze pés e chegaram em Santos. Após uma noite de sono intranquilo, subiram a serra para São Paulo, de onde voaram para Santiago. Se Alberto mordesse a isca, procurando-os no Rio de Janeiro, jamais os encontraria. Haviam combinado, que se tudo corresse bem, Lívia os encontraria ali. Para então definirem seu futuro. Já estavam por merecer dias melhores depois de tanto sofrimento. Deles, apenas Lívia tinha um objetivo definido. Voar para Paris e tentar encontrar Tiago e a filha. Já para decidir o que fariam Leo e Sérgio teriam que esperar a chegada de Lívia. Sérgio necessitava ainda de tempo para retomar suas forças e fortalecer seu espírito. A tortura por tantas semanas tinha deixado cicatrizes físicas e morais. Sua recuperação apenas tinha sido possível graças à dedicação de Leo. Por enquanto não tinha a menor condição de retomar sua vida sem o apoio do amigo. Leo, por sua vez, durante as últimas semanas, praticamente não pensara em si. Agira impulsivamente apenas com o objetivo de resgatar Sérgio e ajudar Lívia a reencontrar sua família. Também se preocupara em salvar sua própria pele, pois já pressentira todo o rancor e ódio de Alberto. Nem por um momento pensara em seu futuro profissional e sua vida pessoal. Atirara-se nessa empreitada de corpo e alma, como se para dar um significado maior à sua vida. Acariciados pela brisa da noite, que se iniciava iluminada por estrelas promissoras, dirigiram-se para a estação do metro Cal y Canto, rumo ao seu hotel, próximo à Catedral. Atravessaram a Plaza de Armas, distraindo-se com o burburinho dos transeuntes e vendedores ambulantes. Era como se estivessem em outro mundo. Tranquilo, sem perseguições. Sem ameaças. Lívia chegou na semana seguinte. Resolvera permanecer mais alguns dias em Assunción, por segurança. Tentara rastrear as atividades de Alberto. Mas nada conseguira. Também não queria informar seu paradeiro a ninguém. Nem mesmo aos companheiros do partido. Escrevera outra carta a Glória, contando-lhe os últimos acontecimentos. Ocultara, entretanto, os planos para reencontrar Leo e Sérgio, pois eventualmente a carta poderia cair em mãos erradas. Mais uma vez solicitava o empenho em tentar descobrir o paradeiro de Tiago e da filha. Pelas últimas informações estariam vivendo em algum lugar em Montmartre. Esta via de comunicação com Glória, além de reacender suas esperanças de reencontrar a família, também a aliviava. Transmitir notícias significava reprogramar o presente. E naquele momento Lívia necessitava reprimir sua ansiedade. Estava cada vez mais próximo o reencontro com Tiago e a filha. Alguns dias depois, no final da tarde, o sol caia vagarosamente, aquecendo a brisa fria que permanentemente refrescava a cafeteria do Cerro Santa Lucia. Uma vista panorâmica de Santiago se oferecia aos dois amigos que bebericavam, sentados em uma das mesinhas toscas com tampo de granito. Já estavam bem acostumados a esse tipo de rotina desde que chegaram à cidade. Nada havia o que fazer e, em segurança, preguiçosamente repassavam as emoções das últimas semanas. Alberto já estava se tornando uma sombra do passado, sem qualquer oportunidade de alcançá-los. Tentavam delinear os próximos passos com a tranquilidade de quem nada tinha a temer. Para entrar no poís tinham utilizado passaportes falsos e usavam outros nomes. Esperavam apenas a chegada de Lívia. Antes de retomar sua nova vida, Leo queria estar seguro de poder encaminhar Lívia para Paris. Com certeza lá, com o auxílio de Glória, certamente haveria de reencontrar Tiago, pondo um fim a uma fase prolongada de solidão e sofrimento. Ela chegou confiante e sorridente. Um longo e caloroso abraço coroou o encontro dos três amigos. Como se tudo que tivessem passado juntos estreitasse ainda mais os laços de amizade. Era o reinício de uma nova vida onde apenas houvesse lugar para a esperança. Em seu apartamento da Rue Mouffetard, Glória lia a última carta de Lívia. As palavras traziam-lhe finalmente as melhores notícias. Muito em breve poderia rever a prima, abraçá-la e confortá-la. Mais do que isso reconduzí-la a Tiago. Depois de meses de procura havia, quase que por acaso, o reencontrado Tiago na Place de Tertre, tomando um pastis, enquanto a filha se divertia com os artistas de rua. Tiago, envelhecido precocemente, ainda guardava no olhar a força interior dos anos passados. Mas não se conteve ante as notícias de Lívia, cuidadosamente transmitidas por Glória. Sentimentos confusos acometeram-no. Lágrimas de alívio e saudade afloraram-lhe nos olhos marcados. Pensar que muito em breve estariam todos reunidos e, em segurança, era muito mais do que poderia naquele momento esperar da vida.

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 13) DESAPARECIDOS

A caminhada pela mata, agora cerrada, tornava-se mais difícil, exigindo muito da disposição e das condições físicas dos fugitivos. O calor úmido tornava o esforço ainda maior, aumentando a necessidade do número de paradas para retomada das forças. Mas sempre com a cautela de se apressarem ao máximo. Havia sempre a possibilidade de Alberto estar em seus calcanhares. E ambos sabiam que, se capturados, não haveria perdão, nem futuro. Apenas a tortura, a dor e o fim de seus dias. Uma pequena cabana de caça surgiu em uma estreita clareira na mata, embora oculta pela copa das árvores. A porta aferrolhada por fora fazia supor um refúgio abandonado. Ao entrarem, logo perceberam vestígios de presença humana recente. Um só ambiente, dividido por cortinas, duas redes penduradas, uma mesa tosca com bancos laterais, prateleiras com utensílios de cozinha e suprimentos, um pequeno fogão e um baú compunham o mobiliário. No baú, agasalhos e duas mudas de roupa, jeans e camisetas. Fora, uma pequena bomba manual fornecia água para um tanque de pedra, revestido por cimento queimado. Os dois amigos trataram logo de preparar uma refeição rápida, e caíram no sono, agradecendo intimamente o conforto das redes. Acordaram algumas horas depois. Na escuridão da noite fechada, cotucados pelo duro e frio cano de uma escopeta calibre doze. Atordoados ainda pelo sono, e aterrorizados pela ameaça iminente, defrontaram-se com a figura de um mateiro. Sérgio, transtornado e lívido, parecia viver uma de suas visões. A figura alta e esguia que lhes apontava uma arma de caça, ressurgia ameaçadora de seu passado. Era a personificação do companheiro do Araguaia, Chico Alemão, que havia deixado para trás, gravemente ferido, para ser capturado, torturado e morto pelos soldados legalistas. Era como se finalmente estivesse sendo punido pelo seu ato de covardia. Sem refletir, caiu de joelhos, chamando pelo nome do antigo companheiro. Leo que já conhecia toda a essa história, através das longas e refletidas confidências de Sérgio nos últimos meses, ficou atônito com a cena do amigo ajoelhado aos pés do desconhecido, pedindo perdão. Contudo, não o suficiente para impedir que repentinamente, aproveitando-se de um momento de hesitação do desconhecido, com um movimento rápido e inesperado, o desarmasse, lançando-se contra ele e o derrubando no solo. Ante um Sérgio cada vez mais dominado por soluços convulsivos, as posições se inverteram, e Leo agora neutralizava o mateiro, usando sua própria arma. Imobilizado, punhos e tornozelos amarrados, o recém-chegado, também surpreso pela reação de Sérgio, e mais ainda pela rápida manobra de Leo, acabou não oferecendo maior resistência. Após cuidar do amigo, que aos poucos retomava a consciência, Leo tranquilizou o mateiro que nada lhe aconteceria. Apenas queriam passar a noite na cabana e retomar seu caminho ao amanhecer. Por sua vez o desconhecido esclareceu estar usando aquele abrigo como base de apoio para o seu trabalho. Era geólogo e avaliava as condições hidrominerais das inúmeras nascentes da região. Ao chegar e deparar-se com os dois arranchados na cabana, apenas por precaução, agira com hostilidade. Também surpreendeu-se com a reação de Sérgio, e principalmente ao ouvir o nome, pronunciado entre soluços, do guerrilheiro morto. Por extrema coincidência, quase inexplicável, eram primos, nascidos em Itajubá, tendo passado toda a infância e adolescência juntos. Físicamente muito parecidos, eram confundidos com frequência. Depois, tomaram caminhos diferentes. O primo entrou para o movimento clandestino, e após absoluta ausência de notícias, foi considerado desaparecido. Provavelmente morto, já que a perseguição aos guerrilheiros tinha sido implacável. Outros amigos tinham sido também considerados desaparecidos. E em alguns poucos casos os familiares haviam sido informados de sua morte, embora nunca tivessem notícia de seus corpos, ou onde tivessem sido sepultados. Após algumas horas de conversa, já havia se estabelecido uma certa camaradagem entre os três. Por não mais representar qualquer ameaça o desconhecido foi libertado de suas amarras. Sérgio acabou relatando sua participação anterior na guerrilha e as condições que cercaram a morte de Chico Alemão. Contou também como tinha sido torturado em campo Grande, e agora como estava tentando refazer sua vida. Omitiu, entretanto, os detalhes da fase mais negativa de sua vida, quando foi um joguete nas mãos de Alberto, delatando os companheiros da guerrilha. Também nada relatou sobre sua vida em Campo Grande e suas tentativas de se redimir, trabalhando como cuidador e motorista de ambulância. De como foi preso por defender Lívia da brutalidade de Alberto durante a passeata. Espantado com a coincidência de se deparar exatamente com uma testemunha do amargo destino de seu primo, em plena mata, e em condições tão inesperadas, o mateiro dispos-se a guiá-los em direção ao litoral. Aquela região afinal lhe era bastante familiar. Com o dia já amanhecendo, tomaram um café forte, e puseram-se a caminho. Os sons da mata nas primeiras horas da manhã eram suaves e alegres. Os raios de sol atravessavam a rama das árvores, criando esteiras de luz que aqueciam a alma e faziam renascer a esperança de dias melhores. E assim suavizavam a caminhada. Até uma colorida cobra bico-de-jaca, extremamente venenosa, quase não se moveu quando passaram ao largo dela, como se naquele momento, mágico, o início de um novo dia, se estabelecesse uma trégua entre todos os seres da floresta. Horas se passaram até que pudessem, sol a pino, ao longe ver o mar. Uma promessa quente de liberdade. Pararam ali para descansar e comer. Por sorte na cabana havia provisões que permitiram aos três saciar a fome e a sede. Borboletas de cores vivas e variadas absorviam a atenção de Sérgio. Talvez porque após tão longo período de privações e tortura, tivesse até se esquecido da existência de tão frágeis e belas criaturas. Na realidade, a essência da vida era também igualmente bela. O homem é que a transformava segundo suas intenções. E estas também transformavam o homem. Tornando a criatura mais perfeita da natureza, às vezes, na mais cruel e hedionda. Leo procurava se entender com o novo companheiro, buscando a melhor forma de chegar a Parati. Seria difícil para os perseguidores imaginarem uma rota de fuga tão engenhosa, de acesso quase impossível, através da mata, descendo a serra para o litoral. E o melhor é que contavam com muitas horas de vantagem em relação a Alberto. Este, após invadir violentamente a pousada de Analucia, a soldadesca revirando tudo, constatou, irado, que mais uma vez os fugitivos haviam lhe escapado. Furioso, passou a interrogar as duas mulheres. Usando como sempre seus métodos violentos. Inicialmente ambas recusaram-se a colaborar. Até que a dor causada pelos golpes do chicote de montaria de Alberto quebraram sua resistência. Analucia, mais para preservar Dora, confessou ter recebido o irmão e um amigo, que ali haviam chegado para algumas semanas de férias. Praticamente não haviam saído da pousada, limitando-se a longos períodos de leitura e conversa ao sol, junto à pequena piscina. Não recebiam visitas, nem telefonemas. Restringiam-se a rememorar momentos de família, há muito esquecidos por Analucia. Nenhuma palavra sobre política. Ou sobre a fuga de Campo Grande. Era como se Leo houvesse planejado um reencontro tranquilo com a irmã. Aproveitando para tratar de um amigo doente. Com problemas de amnésia transitória. Para o que necessitava da tranquilidade do ambiente bucólico da pousada. Já prevendo a inutilidade do interrogatório, e mais uma vez surpreendido pela sagacidade demonstrada por Leo, apartando a irmã de qualquer conhecimento que pudesse fornecer informações sobre o paradeiro dos fugitivos, Alberto já se dispunha a prendê-las, quando seu ajudante de ordens procurou-o ansioso. Havia descoberto algo de importante que talvez esclarecesse sobre o paradeiro de Leo. Era um envelope encontrado no fundo do guarda-roupas no quarto utilizado pelos fugitivos. Esquecido entre um par de sapatos sociais ali deixados. Nele havia um roteiro de viagem programada por uma agência de turismo de Goiânia. Um vôo Rio de Janeiro – Lisboa para dois passageiros. Também um recibo de compra de dois bilhetes. De imediato, Alberto, finalmente acreditando que a sorte lhe sorria, correu para o jipe, e através do rádio entrou em contacto com a central de informações da polícia do exército, solicitando uma investigação imediata na agência de viagens em Goiânia. Juntando seus homens, deixou Analucia e Dora prostradas,e abalou-se para o Rio de Janeiro. Talvez ainda houvesse como interceptar os fugitivos. Ou pelo menos ter notícias reais de seu paradeiro. Nem que fosse a última coisa a fazer na vida iria atrás deles. Cedo ou tarde teria sua vingança. Entretanto havia antes por fazer seu tratamento ocular. A dor de cabeça agora era quase contínua. Não havia como esperar mais. Horas depois, recebeu um comunicado da central de investigações. Em caráter de urgência a agência de viagens foi investigada. Efetivamente dois bilhetes aéreos haviam sido comprados naquele roteiro, em nome de dois desconhecidos. Provavelmente utilizando passaportes falsificados. O pagamento havia sido feito em dinheiro vivo, o que até chamou a atenção do funcionário da agência. Quem comprara os bilhetes havia sido uma mulher ainda jovem, cabelos curtos, de poucas palavras. As condições inusitadas da compra, apesar dos nomes falsos, deu quase certeza a Alberto de que se tratava de Leo e Sérgio. Até a descrição da mulher de cabelos curtos coincidia com a enfermeira que havia acompanhado Leo no resgate de Sérgio da Casa de Detenção de Campo Grande. Mais tarde haveria também de encontrá-la e ajustar as suas contas com ela. O aeroporto do Galeão estava quase deserto quando Alberto e seus soldados irromperam pelo saguão principal. Sem demora, dirigiram-se para a agência da TAP ( Transportes Aéreos Portugal ), onde um funcionário mais graduado os recebeu. Autoritariamente Alberto requisitou as listas de passageiros embarcados nos últimos vôos para Lisboa. Após uma longa espera, retornou com as listas. Alberto ansiosamente percorreu todos os nomes. Repentinamente parou, atirando as listas ao chão. No vôo do dia anterior constava o nome dos dois passageiros embarcados.

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 12) EMPINANDO PIPAS

Alberto estava se preparando para sua viagem. Mas sem muita pressa. Oprimido ainda pela humilhação de ter sido derrotado pelo médico que Que neutralizara os seus planos e acabara fugindo, levando consigo Sérgio. Estes contavam com várias horas de vantagem, o que tornava muito difícil alcançá-los. A perseguição à fuga tornara-se quase inútil. Não haviam deixado pistas. Embora o aeroporto e a rodoviária tivessem sido fechados, e ninguém saísse de Campo Grande sem rigorosa investigação, Alberto pressentia que os fugitivos já estivessem longe, usando estradas vicinais, praticamente impossíveis de serem vigiadas. Essa situação de impotência queimava-o por dentro. Não entendia ainda como havia se deixado enganar. Mas ainda não encerrara o assunto. Prontamente procurou a intervenção da polícia social e política, solicitando ampla investigação sobre a vida pregressa de Leo. Cedo ou tarde uma pista surgiria que lhe permitisse capturar os fugitivos. E aí iria à forra. Os dias se passavam, e na pousada de Analucia, Sérgio se recuperava lentamente. Cicatrizava as feridas do corpo e da alma. Principalmente devido à dedicação de Leo. Este se esmerava em tudo fazer para acelerar a recuperação do amigo. Sabia que não poderiam ficar muito tempo naquele refúgio. Alberto não poderia ser despistado por muito tempo, pois tinha acesso ao sistema de informações da polícia social, que certamente acabaria localizando a pousada da irmã. E Leo conhecia muito bem o espirito vingativo do militar, que certamente não deixaria passar a oportunidade de prendê-los. Mesmo que isso pudesse resultar em prejuízo de sua própria visão. Contava apenas que a progressão da doença continuasse rápida, impedindo Alberto de continuar a perseguí-los. Passadas algumas semanas, Leo foi acordado no meio da noite pelo telefone que tocava insistentemente. Havia dado o número para Lívia para uma eventual emergência. E era exatamente ela. Aflita informou que seus contactos no partido em Campo Grande haviam-na procurado, dizendo ter Alberto finalmente localizado o paradeiro da irmã de Leo. Em seguida tinha se mobilizado para reiniciar a caçada aos fugitivos. Não havia tempo a perder. Deviam desaparecer rapidamente. Lívia também iria procurar um novo refúgio. E marcaram um local de contacto para dentro de dois meses. Um hotel em Santiago do Chile. Quem não conseguisse se contactar, era porque certamente teria sido apanhado e preso. Às carreiras, Leo acordou Sérgio, reuniu seus poucos pertences em duas maletas de mão, e despediu-se da irmã e da amiga. Dinheiro e passaportes na mão. Falsificados adequadamente para um momento como esse. A Caravan prata, roncando o motor, desapareceu na noite. Analucia por recomendação do irmão apagou todos os vestígios da presença dos dois. Pela estrada sinuosa, estreita e mal conservada Leo e Sérgio tomaram o rumo de São José do Barreiro, onde trocaram a Caravan por um jipe com tração nas quatro rodas. Este era um recurso que Leo já havia preparado para uma situação de emergência. Bem como a rota de fuga habilidosamente preparada. Já amanhecendo, subiram o íngreme e pedregoso caminho que conduzia ao alto da serra. Algumas horas depois chegaram à Pousada do Veado. Aconchegante chalé, paraíso para os que procurassem reclusão e íntimo contacto com a natureza. Registraram-se com nomes falsos, e após uma refeição à base de trutas e amendoas, seguida de uma reconfortante noite de sono, fecharam a conta e como turistas despreocupados, mochila nas costas, iniciaram uma trilha. O frescor da manhã, os sons e odores do amanhecer na serra estimularam os dois amigos. Enchendo os pulmões com o ar puro e frio, revigorados e esperançosos, embrenharam-se mato a dentro. Embora a rota tivesse sido detalhadamente planejada por Leo, a experiência anterior de Sérgio no Araguaia facilitou muito a árdua caminhada. A trilha de repente desapareceu. O que já esperavam. Embrenharam-se na mata, iniciando uma íngrime descida por um terreno desconhecido e bastante acidentado. Paravam a cada hora para descansar e rever a rota planejada. Não se depararam com nenhum animal de grande porte. Pássaros, muitos. Que enchiam a manhã com seus trinados. Macacos e até um veado. A caminhada tornava-se cada vez mais difícil. O que até lhes era interessante. Jamais alguém iria imaginar um trajeto tão difícil como rota de fuga. Principalmente para um médico não acostumado a grandes exercícios físicos, acompanhado de um fugitivo enfraquecido pela tortura. Pelo menos assim contavam ludibriar Alberto, que certamente já se encontrava em seu encalço. Acamparam rusticamente em uma pequena caverna em meio à descida e prepararam-se para passar a noite. A mata parecia viva. Os sons dos seres noturnos enchiam o ar, que mal parecia ultrapassar a copa das árvores que ocultavam parcialmente o céu estrelado. Leo não tinha nenhuma familiaridade com as manhas de acampar. Saco de dormir, chão duro, insetos noturnos nunca tinham feito parte de seu universo. Mesmo assim a estafante jornada do dia trouxe-lhe um sono pesado. Sérgio ressentia-se da longa caminhada. A caminhada através da mata trouxe-lhe à lembrança os tempos do Araguaia. Talvez por isso mesmo, em meio ao sono agitado que o acometeu novamente as visões voltaram. A figura esguia e alta, a barba por fazer, os olhos brilhantes, seu antigo companheiro de guerrilha voltava para assombrá-lo. O peito perfurado de balas, ainda o sangue vertendo, como se aquela imagem estivesse temporariamente congelada. Caminhava em sua direção dizendo-lhe algo. Mas as palavras eram inaudíveis. Sons que ecoavam mas não chegavam até ele, porque eram abafados por um outro barulho. Desagradavelmente familiar. Quase inimaginável naquele momento. O som das botas de cano alto de Alberto, aproximando-se rapidamente. Tentou levantar-se, mas mãos vigorosas o mantiveram no chão, enquanto outras o amordaçavam. Repentinamente a dor das sessões de tortura fez-se lembrar vividamente. Despertou banhado em suor. Aliviado pelo sol da manhã que se infiltrava pelas ramas das árvores. Permaneceu alguns minutos deitado, entregando-se àquele momento mágico. Sentindo-se vivo, livre e envolvido pela exuberância da mata despertada. Refeito, levantou-se lentamente e preparou um café forte. O amigo ainda dormia. Pensava em todas as reviravoltas de sua vida. Em sua juventude. Em como naqueles tempos descompromissados Leo tinha sido o alvo predileto de suas brincadeiras, nem sempre de bom gosto. E como os amigos formavam um grupo alegre e sempre disposto a viver intensamente. Mesmo naqueles anos de chumbo. A opressão política sempre presente. Violentamente limitante. Talvez exatamente por isso. Glória. A presença sempre sorridentemente inspiradora. Apaixonante. Nem tanto pela beleza. Mas pela ânsia de viver cada momento em toda a sua plenitude. Na realidade, era ela quem estimulava todo o grupo, contaminando-o com sua eterna disposição. E fora justamente através dela que ele ferira radicalmente Leo. Destruindo seus sonhos. Fazendo-o isolar-se para tentar um novo recomeço de vida. E fora justamente Leo quem o salvara. Arrancando-o das mãos de Alberto. Às custas de sua própria vida. Outra vez deixando tudo para trás, por ele, Sérgio, quem mais o ferira. Um homem de passado condenável. Em Goiânia, Lívia após avisar Leo de que Alberto retomara a perseguição, abalara-se em colocar-se também a salvo. A fuga de Campo Grande e o resgate de Sérgio haviam enfurecido o militar, que jamais imaginaria ter sido ludibriado pelos três amigos. Também nunca lhe passara pela cabeça abrir mão de Sérgio, para quem tinha reservado uma execução exemplar. Ainda que o tempo perdido na tentativa de recapturar os fugitivos pudesse lhe prejudicar o tratamento de seus olhos, que o incomodavam cada vez mais, não deixaria que ninguém o passasse para trás. Era uma questão de honra capturar e torturar o médico almofadinha e o guerrilheiro renegado. Lívia, juntando seus poucos pertences, e os dólares que Leo havia reservado para ela, exatamente para uma fuga rápida, fretou um monomotor e voou clandestinamente para Assunción, no Paraguai. Lá chegando, tentou permanecer sem despertar suspeitas, reclusa em um pequeno hotel, de onde após duas semanas conseguiu voar para Santiago do Chile. O Chile elegeu em 1967 Salvador Allende, médico e político de esquerda, constituindo-se no primeiro país ocidental a eleger democraticamente um presidente marxista. Mesmo após o golpe militar de 1973 e a tomada do governo pelo general Pinochet, Santiago continuava sendo, principalmente para os exilados políticos brasileiros, uma porta segura para as capitais da Europa. Com um pontapé Alberto arrombou a porta da pousada. Os soldados, invadindo a casa, acordaram com violência a única funcionária. Analucia e Dora, terrificadas, mal acreditavam no que acontecia. Felizmente não havia hóspedes. O dia se iniciava inesperadamente carregado de violência e medo.