quinta-feira, 12 de julho de 2012

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 10) A NOITE DO IGUANA

Leo dirigia atento aos buracos da estrada de terra. Já haviam se passado quase duas horas desde que a ambulância emprestada à Santa Casa de Campo Grande passara pelos portões da Casa de Detenção. Apesar da brisa fresca da noite, a camisa branca do uniforme de condutor, sorrateiramente apanhada no vestiário dos funcionários, estava empapada de suor. O mesmo suor que lhe banhava e testa e merecera olhares atentos dos guardas dos portões. Mesmo assim conseguira passar pelas sentinelas sem dificuldades. E dirigir-se para a saída de Campo Grande com uma velocidade regular, mas não suficiente para despertar qualquer suspeita.A direção do carro era dura, a embreagem muito baixa, o motor rasnava nas subidas, os amortecedores pareciam exalar o último suspiro. Tudo tão diferente do conforto e desempenho de seu Mercury azul importado. Mas para aquele momento nada mais era tão adequado quanto a velha ambulância, que valorosamente rompia a escuridão da noite, e conduzia sua carga, distanciando-se cada vez mais do centro de Campo Grande. Vez ou outra olhava para trás para conferir as condições de seu passageiro. Deitado em uma maca e atado por correias de couro o corpo desfalecido de Sérgio, em péssimas condições estava alheio a tudo que se passava à sua volta. Vestindo roupas e sapatos de má qualidade, obtidas de funcionários do presídio, a pele coberta de equimoses e cicatrizes, a musculatura atrofiada, os dedos das mãos grotescamete desviados por múltiplas fraturas, resultado do prolongado período de tortura, mantinha-se torporoso. Irreconhecível. Vê-lo assim , fora um duro golpe para Leo. Seu antigo companheiro transformado em um farrapo humano. Um lixo descartável, que, entretanto, trazia dentro de si uma inquebrantável obstinação em permanecer vivo, mesmo sob o atroz sistema de tortura a que era há meses submetido. Resistia mais por instinto. Como se esperasse em toda a sua miséria humana, um resgate que nunca veio. Até o momento em que Alberto, o torturador, foi consultar-se com Leo. ¨¨ ¨¨ ¨¨ Desde a primeira consulta o antagonismo franco entre ambos se mostrou evidente. Foi quase com insensibilidade, condição que nunca fez parte do caráter de Leo, que este deu a Alberto a notícia de que sua visão estaria irremediavelmente perdida, e a curto prazo, caso não se submetesse a um tratamento cirúrgico imediato. Com o agravante que os melhores resultados seriam obtidos se a cirurgia fosse feita no exterior. Foi um militar arrasado que saiu da clínica. De repente toda a segurança, a soberba, a crueldade, a vaidade extrema foram substituídas pelo vazio de um futuro sem esperança. A mesma esperança que tudo fazia para arrancar do coração daqueles que torturava desapiedadamente. E nas semanas que se seguiram, mesmo assim, manteve sua rotina diária, obsessivamente mais rígido e brutal. Comportava-se como um animal ferido e acuado. Foi nesse estado de ânimo que, sob tortura, arrancou de Sérgio uma pista que o ligou a Leo. Embora ainda sem certeza de nada, intimou Leo a mais uma vez depor. Desta vez na Casa de Detenção. ¨¨ ¨¨ ¨¨ Lívia aguardava ansiosa o retorno do amigo. Não imaginava outra razão não que não fosse o seu passado, para que Leo mais uma vez fosse interrogado pela autoridade militar. Não havia muito, conseguira localizar o endereço da amiga Glória em Paris. Após alguns dias de indecisão escrevera uma carta, contando por tudo que passara nos últimos anos. Sua vida com Tiago, a perseguição por ele sofrida, a prisão e a tortura, o reencontro com Rodolfo e como este fora essencial para a liberação de Tiago. Também sua decisão interior de continuar a lutar no movimento secreto para a redemocratização do pais. O reencontro de Tiago com o pai, a fuga, os desencontros e o início de uma nova fase da vida. Solicitava à amiga que procurasse encontrar sua família. Tivera o cuidado de viajar para a fronteira do Paraná, para de lá postar a carta para Paris. Mesmo com todos esses cuidados tinha vivido em sobressalto nas últimas semanas, receosa de ter deixado alguma pista, e ser descoberta de uma hora para outra. E também havia Sérgio, ou pelo menos a sombra do Sérgio que um dia conhecera. Sua transformação radical, seu passado sem respostas. E agora também seu misterioso desaparecimento. Como se tivesse sido engolido pelo seu próprio passado. ¨¨ ¨¨ ¨¨ Alberto também aguardava intranquilo a chegada de Leo. Desde o dia em que soubera que em breve perderia a visão, em desespêro íntimo, mas nunca extravasado, tinha procurado uma saída. Mas até agora nada havia encontrado. A dor, cada vez mais constante, o torturava, dificultando-lhe o raciocínio e aguçando sua crueldade.Descontava nos subordinados e nos simpatizantes da guerrilha, que perseguia sem tréguas, toda a sua amargura e pavor por saber que em breve seria um deficiente. Sem família. Sem amigos. Nem mesmo os companheiros de farda tinham qualquer afeto por aquele indivíduo cruel e sem escrúpulos. Que tudo fazia em benefício próprio e de sua carreira. E, de repente, em uma das frequentes sessões de tortura, em sua inconsciência, Sérgio deixara escapar o nome de um dos amigos da faculdade de medicina. Balbuciando palavras inintelegíveis, lembranças profundamente gravadas em seu espírito pareciam emergir, ativadas pelo sofrimento físico e pela tortura mental, mas detinham-se, contidas por uma barreira invisível, como se o passado até para Sérgio fosse de acesso impossível. Procurando nos arquivos do setor de identificação no Rio de Janeiro, encontrara a informação segundo a qual Sérgio e Leo tinham se formado no mesmo ano, porém em universidades diferentes. Era uma pista muito frágil. Mas a única que dispunha. E com sagacidade e sorte poderia fazer bom uso dela. Talvez, apenas talvez uma solução para seu problema. Para uma nova vida. Já que a de militar tinha seus dias contados. ¨¨ ¨¨ ¨¨ Leo passou pelas sentinelas dos portões da Casa de Detenção identificando-se com uma sensação de peso no peito. Ansiedade, mas não temor. Estava certo que sua intimação nada tinha a ver com sua ajuda a Lívia. Não havia qualquer indício disto. Por outro lado tinha como trunfo agora a posição vulnerável de Alberto. Conhecia talvez o mais importante de seus segredos. Mesmo assim, por conhecer agora melhor o torturador, gostaria mesmo de estar bem longe dalí. A Casa de Detenção desde que chegara a campo Grande era para ele o símbolo da arbitrariedade e da truculência naqueles tempos de opressão. Subira as escadas de madeira encardida que davam acesso ao segundo piso, procurando a sala de reuniões, onde se daria a entrevista. Uma mesa longa de tampo de madeira, marcada por garatujas e nódoas escuras, seis cadeiras retas e mais nada. Nenhum armário ou equipamento que fizesse supor qualquer tipo de arquivo ou documentação armazenada. Também nenhum quadro nas paredes nuas. Nem mesmo a tradicional foto oficial do presidente. Após meia hora de espera – tinha certeza de que o atraso era uma técnica de intimidação – a porta se abriu e Alberto entrou sozinho. De novo as botas de montaria rigorosamente engraxadas, a farda estalando de engomada, o cabelo vaselinado. Os óculos escuros impediam que seus olhos falassem. Apenas os lábios finos se moviam, cortantes e incisivos como lâminas cortantes. Iniciou justificando que aquela entrevista poderia resolver alguns problemas de rotina pendentes, para os quais a ajuda de Leo poderia ser essencial. Solicitou-lhe também, desde que estivesse de acordo, que respondesse a algumas perguntas`pessoais. Estas cobriram toda a sua adolescência e formação profissional. Principalmente seu relacionamento social na época da universidade. Cautelosamente, e surpreso com a aparente cordialidade do interlocutor, Leo procurava responder com segurança, escolhendo as palavras, e sem demonstrar as contradições e lembranças, que aquelas perguntas provocavam. Mas não se deixava envolver por elas, e media bem as suas respostas. Percebia que o militar nada tinha de concreto e que estava jogando verde para colher maduro. Isto o fortalecia, mas mantinha-se sempre na defensiva. Ficou quase abalado quando o nome de Sérgio foi citado. De repente, como num turbilhão voltaram as imagens de um passado que para ele estava soterrado. Pelo menos deveria. Glória. A humilhação. O reconhecimento da sexualidade abalada. A deserção dos amigos. O início de uma vida nova. A conquista de um lugar ao sol. E agora essas perguntas tão sem propósito. Partindo de um indivíduo desclassificado. Marcado pelo destino a pagar por todos os seus atos criminosos. Então o rumo da conversa mudou. Alberto passou a indagar sobre os detalhes da cirurugia a que teria que se submeter. Qual a melhor indicação para o serviço a procurar, qual o especialista mais indicado. Qual o custo operacional presumido. Leo, cada vez mais confuso com o rumo que o interrogatório tomava, tentava responder objetivamente, mantendo a lucidez e sua postura defensiva. Cada vez mais entendia menos onde Alberto queria chegar. Os óculos escuros não permitiam a identificação da mensagem do olhar. Funcionavam como um bloqueio. Leo não conseguia ler nos olhos de Alberto sua principal intenção. Este subitamente começou a falar de sua vida, mansamente. Sobre como iniciara sua carreira militar. Sobre suas atividades de campo durante os meses da guerrilha do Araguaia. Até como fora promovido em função das informações que conseguira obter de seus prisioneiros. Depois como viera parar em Campo Grande, suas atividades locais. E quanto sua vida estaria comprometida com o avanço de sua doença. Como era incerto e amargo seu futuro. Também confessou que apesar de cômoda, sua situação financeira não lhe permitiria tratar-se adequadamente. Novamente desviou o assunto para as consequências que o movimento de guerrilha traria para a família e sociedade brasileira. Cinicamente argumentava que o rigor de sua conduta para com os guerrilheiros e simpatizantes nada mais era do que atos patrióticos que buscavam a reinstalação da ordem política e social no país. Apenas procurava desempenhar bem seu papel de identificar e punir radicalmente qualquer elemento que pudesse contribuir para o caos social. A medida que falava o tom de sua voz tornava-se ameaçador. As narinas dilatadas, a respiração ofegante traiam-lhe a paixão e o ódio com que sempre desempenhou suas funções de policial e interrogador implacável. Leo retraíndo-se via a figura de Alberto se avolumar, alimentada por uma onda de emoção negativa, que tornava seu cinismo um impetuoso desabafo. Talvez o reconhecimento naquele momento de tudo aquilo que estava na iminência de perder. E que não estava disposto a entregar tudo sem luta. Faria qualquer coisa para resgartar sua vida. Repentinamente, tomando grosseiramente Leo pelo braço, convidou-o a acompanhá-lo. Num tom que não admitia recusas. Desceram pelas escadas, encaminhando-se para o pátio central, utilizado pelos prisioneiros para raros momentos de exposição ao sol. Sempre em pequenos grupos e fortemente escoltados. Naquela tarde o pátio estava vazio. O sol a pino, inclemente, fazia brotar gotas de suor que escorriam vagrosamente pela face de Leo. Seguramente não eram causadas apenas pelo calor. Ao seu lado, em silêncio, Alberto caminhava vigorosamente. Sem transpirar. As botas de montaria tirando sons ritmados do piso revestido por asfalto em mal estado de conservação. Chegaram a uma ala fortemente vigiada. Alberto abriu a porta e introduziu Leo em um ambiente escuro, sem janelas. Uma porta de ferro reforçada dava acesso a um corredor, que exalava um cheiro de mofo e urina. Chamando o carcereiro, Alberto conduziu Leo ao piso inferior, iluminado apenas por fracas lâmpadas. Cubículos se alinhavam em um dos lados da parede. Sem qualquer janela para iluminação ou ventilação. O odor pesado persistia, agora fétido. Repentinamente pararam defronte a uma das celas. Quando o carcereiro a abriu, Alberto impetuosamente empurrou Leo para dentro. ¨¨ ¨¨ ¨¨ Muito distante dali Glória preparava-se para iniciar mais um dia de trabalho no hospital. A rotina a ocupava inteiramente, impedindo-a de pensar em seu casamento fracassado. Na filha adotada por sua alma, com um futuro tão limitado. Atender aos seus pacientes, auxiliando-os a carregar as dores da alma, sempre que não pudesse tratá-las, dava sentido a sua existência. Estavam distantes os dias de alegria inconsequente e irresponsabilidade acadêmica. Vez ou outra vinham-lhe os ecos de um relacionamento que deveria ter sido inesquecível, mas que se perdera no labirinto dos meses e anos deixados para trás pelo universo de cada novo dia. Seus amigos onde quer que estivessem não lhe pertenciam mais. Tinham seguido rumos diversos e desconhecidos. Pelo menos era o que pensava até há algumas semanas, quando surgido do nada, Rodolfo a encontrou. Sem qualquer preparo, desatenta, em uma tarde preguiçosa no Deux Magots. Até o cenário romântico e intelectual da pequena praça em Saint-Germain-des-Près contribuira para a desordem afetiva daquele encontro. Inesperado. Carregado de emoções. Emoções e sentimentos que já havia tempo não se lembrava de experimentar. Foram momentos que convulsionaram sua forma de vida, assumida os últimos anos. O passado retornou sobressaltadamente. As notícias trazidas por Rodolfo confirmavam o clima de intranquilidade e violência que o país deixava transparecer para o exterior. Em Paris, inúmeros brasileiros exilados mantinham grupos de discussão e autojuda. Tentando resistir à distância à autoridade militar instituída. A guerrilha do Araguaia tinha conseguido despertar o interesse estrangeiro. Mas através de interesses excusos, visto que o próprio governo francês, emprestando solidariedade à ditadura, enviou consultores militares, que passaram a treinar as tropas governistas com táticas utilizadas na Legião Estrangeira, com larga experiência em guerrilhas no norte da África. Com apreensão Glória tomou conhecimento do que havia ocorrido com seus amigos e do destino incerto de Lívia, Tiago e Sérgio, este constando até na lista dos desaparecidos. Um misto de pesar e até arrependimento a envolveu. Por estar ausente do seu país nessa fase crítica, e principalmente por não ter convivido com os amigos, exatamente nos momentos em que mais poderiam necessitar dela. Repensou pela milésima vez o casamento frustrado. Sua vida de dedicação profissional e a filha, que dela tanto necessitava. Não fosse por ela, não resistiria ao impulso de retornar ao Brasil. Mas sabia que isto era agora impossível. Sua vida tinha tomado um rumo que não permitia mudança de curso. Uma rota que nos próximos anos a levaria a uma solidão crescente e insuportável. ¨¨ ¨¨ ¨¨ Leo, tomado de surpresa, desequilibrou-se porta a dentro, estatelando-se no piso irregular de cimento frio. A porta fechou-se com estrépito. De imediato foi envolvido pela escuridão. O mau cheiro era insuportável. Uma onda de náusea mal reprimida o acometeu. Ainda fora de si, e sem saber o que estava ocorrendo, pouco a pouco os olhos de Leo foram se acostumando ao escuro. Não havia janelas. A ventilação, quase inexistente, fazia-se por uma portinhola gradeada na porta. Ouviu a voz de Alberto cinicamente sugerindo que aproveitasse o reencontro. Os saltos de suas botas de montaria, afastando-se, ressoavam no corredor. Pouco a pouco foi-se apercebendo de que não estava só. No fundo da cela, encolhida no canto, uma sombra quase amorfa jazia inerte. O corpo esquálido vestindo apenas uma bermuda esfarrapada, braços e pernas com equimoses, cicatrizes e pústulas. Cabelos longos, emaranhados e sujos. A barba cerrada emoldurando olhos encovados. Olhos claros que o fitavam tentando reconhecê-lo. Aqueles mesmos olhos que tanto haviam sorrido para ele em quantos momentos de alegrie companheirismo. Alguma coisa parecia muito familiar a Leo. Foi a duras penas que algo emanado daquele destroço humano atingiu Leo, fazendo-o reconhecer o antigo camarada. Nada ali fazia lembrar o Sérgio exuberante, inconseqüente e atrevido dos tempos da faculdade. Mas por baixo de toda a destruição aparentada por aquele corpo maltratado, finalmente teve certeza de que era mesmo o amigo. Ao menos, uma pálida sombra. Controlando os sentimentos revoltos, e mais ainda a náusea que o acometia, aproximou-se, tentando fazer-se reconhecer. A mente do infeliz estava como que amortecida pela tortura contínua dos últimos meses. Parecia esforçar-se por retomar lembranças ou imagens que pudessem recontactá-lo com a realidade. Balbuciava frases desconexas. Estava desidratado e febril. Não chegou a reconhecer Leo, embora pressentisse nele alguma forma de conforto físico espiritual. Deixou-se abraçar e desfaleceu. Como tantas outras vezes, procurando na inconsciência refúgio e amparo. Leo deixou-se ficar estarrecido, sentado no chão da cela sem mobília. A cabeça de Sérgio recostada em sua perna esquerda. Já não sentia mais o fedor e a umidade abafada do ambiente. Vinha-lhe em seqüência um conjunto de imagens vertiginosas e desordenadas, Seus irmãos,a ida para o Rio, o primeiro encontro com Glória. Os anos da universidade, os amigos e a convivência que havia pouco a pouco transformado seu jeito de ser. Até mesmo a humilhante noite de fim-de-ano na mansão do Jardim Botânico. Tudo parecia ter revivido com cores fortes e vibrantes. Contrastando com a imagem atual de um Sérgio aniquilado. Física e moralmente. Sem identidade, frágil, sem dignidade. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Que rolaram abundantemente por sua face. Chorava pelos momentos e frustrações do passado. Pelas perdas familiares. Pelos seus desencontros. Pelo desperdício de tantos momentos seus e de seus amigos, que deixara para trás. Pela imagem, condição humana e dignidade de Sérgio. Perdidas. Pelo reencontro dos dois naquela cela fétida. Pelo ódio surdo que começava a nutrir pelo carcereiro e torturador Alberto. ¨¨ ¨¨ ¨¨ Um gemido, quase um lamento, fez-se ouvir na maca, a um solvanco maior da ambulância na estrada mal conservada.Noite a dentro, vez ou outra os faróis iluminavam,atravessando o leito carroçável, a corrida rápida de algum roedor de hábitos noturnos. Roedor que, de imediato, lembrou-lhe Alberto. Asco,ódio e ao mesmo tempo pena. Pena pela pequenez de alma, pelo ser abjeto. Pelo desperdício de uma vida, empenhada apenas em fazer sofrer o próximo. O iguana é um réptil de hábitos diurnos. Quando habita a terra, geralmente alimenta-se de cactos, apesar dos espinhos. Já a espécie marinha permanece horas imóvel sobre as rochas. Aquecendo-se ao sol. Por ter o sangue frio, necessita do calor do sol para gerar energia necessária aos sucessivos mergulhos na água fria do mar. Suas garras afiadas aderem aos recifes, permitindo-lhe, apesar do movimento das ondas, alimentar-se das algas. Leo imaginava que, para escapar à perseguição de Alberto, deveriam imitar o iguana. Permanecer imobilizados a maior parte do tempo, para não despertar suspeitas, enquanto Sérgio se recuperava fisica e espiritualmente. ........................................................ Alberto o tinha deixado quase duas horas na cela com Sérgio. Quando a porta se abriu, dois carcereiros entraram, levantaram Leo e o levaram para fora. Ainda aturdido e envolto em forte emoção, Leo deixou-se conduzir à ala central da Casa de Detenção. De novo na sala de reuniões, deixou-se cair em uma das cadeiras retas e desconfortáveis, apoiando os cotovelos na mesa de madeira lascada. O rosto entre as mãos, tentando se recompor. E ao memo tempo a tortura mental de não conseguir advinhar as intenções d Alberto. De quem tudo se poderia esperar. Ansiedade também por Lívia, que até o momento estivera fora do cenário. Mas com os antecedentes dela, não poderia esperar impunidade por muito tempo. Pelo menos ela deveria ser preservada, já que, pelo seu relacionamento com Sérgio, seu futuro estava praticamente nas mãos de Alberto. O som das botas ecoou no corredor, anunciando o fim da trégua. Alberto entrou trazendo um volumoso arquivo e sentou-se defronte a ele. Folheando lentamente as páginas, sem qualquer comentário, passou a apresentar todas as evidências registradas em relação à vida pregressa de Sérgio, desde seu recrutamento pelo movimento clandestino, sua chegada ao Araguaia, seu primeiro assentamento e ativação como revolucionário junto aos povoados da região. Também como,após escapar de uma emboscada, na qual importante líder da guerrilha fora aprisionado e executado, Sérgio desaparecera. Para reaparecer meses depois e sob tortura transformar-se em colaboracionista. Também como desaparecera novamente, para ser novamente preso, agora em Campo Grande, como ativista e subversivo da ordem. Fechando o arquivo, Alberto cravou-lhe os olhos brilhantes e atemorizadores. E continuou a falar, agora ameaçadoramente. ¨¨ ¨¨ ¨¨¨ Lívia já não mais se continha. Um aperto no coração traduzia toda a ansiedade da espera. Leo já estava pelo menos há seis horas na Casa de Detenção. Pelo que conhecia de Alberto, que intimara a presença de Leo para prestar esclarecimentos - sobre o que ? – essa demora somente poderia trazer maus presságios. Embora imaginava ter seu futuro em risco, e assim diminuir ainda mais as oportunidades de rever sua família, temia também por Leo, que generosamente a acolhera como uma irmã muito querida, que após muito tempo fora tivesse voltado para casa. Ela também aprendera a considerá-lo como um irmão presente e protetor. Confidente e cúmplice. Os pensamentos mais desencontrados faziam girar sua cabeça. Batidas na porta. Aflitas. Foi um Leo transtornado que entrou no pequeno apartamento de Lívia. Cabelos em desalinho, olhos avermelhados, as roupas amarfanhadas e uma expressão de espanto no olhar. Tomando as mãos de Lívia, sem mesmo esperar por um copo de água, contou-lhe todas as emoções das últimas horas. Emoções que também abalaram Lívia. As voltas que o mundo dá. Sérgio vivo, mas em que condições. Um farrapo humano. Mesmo assim o antigo companheiro de uma fase dourada de sua vida.Talvez a mais feliz.Até a festa de fim de ano de 1968. Depois dela o grupo se desfizera, cada um tomando o seu caminho. E agora pela obra do destino os três estavam juntos outra vez. Ou pelo menos quase isso. Unidos pelo passado que retornava e pelo presente,abraçaram-se. Lágrimas selavam um pacto de amizade que os amparava naquele momento. Ficaram alguns minutos gozando aquele momento. Trocando forças renovadas. Abrindo a geladeira, Lívia serviu em dois copos altos um Chateau Duvalier gelado. O vinho desceu revigorante. No sofá cor de terra Leo descrevia as precárias condições de Sérgio, que nem chegara a reconhece-lo, tal o grau de sofrimento físico a ele imposto. Depois seus olhos tornaram-se mais duros, rancorosos. Explicou como Alberto descaradamente havia posto em suas mãos a vida de Leo. Como friamente havia lhe contado sua firme intenção de prolongar as sessões de tortura enquanto Sérgio vivesse. De nenhum modo este escaparia ao seu destino de guerrilheiro fraco e incompetente. Traidor da pátria e até da guerrilha. Um verme que não merecia complacência. Seu saco de pancadas, sempre disponível para mais uma sessão de sadismo. E agora o doutor sabidamente ligado a ele. Seria um prato cheio para os mexericos locais. O Dr. Leonardo, eminente médico de Campo Grande, ligado ao movimento clandestino, através de um de seus mais ativos quadros, denunciado por um dos ativistas que programaram a passeata, onde cidadãos inocentes ficaram feridos. Seus superiores certamente iriam cumprimenta-lo por mais esse sucesso. Seus superiores. Que certamente nesse momento de sua vida, com sua carreira e seu futuro radicalmente comprometidos pela enfermidade que o afligia, o abandonariam à sua própria sorte. O exército não teria condições nem a intenção de bancar o seu tratamento. Esta então era a única oportunidade do doutor safar-se dessa enrascada. Dinheiro vivo. Para financiar o tratamento de Alberto no exterior e bancar o início de uma nova vida. Caso contrário, os rigores da lei. Esta estava agora em suas mãos. E a execução imediata de Sérgio. Mandara-o embora, sem mais uma palavra, confiscando-lhe os documentos. Assim nem pensaria em deixar a cidade. Dera-lhe vinte e quatro horas para decidir. ¨¨ ¨¨ ¨¨ ¨¨ ¨¨ Teve que parar outra vez. O soro com nutrientes transfundido continuamente em Sérgio acabara. Necessitava de troca. E ele também de esticar um pouco as pernas. Já estava dirigindo há quatro horas. E a estrada não ajudava em nada. Esburacada e sem sinalização. A água desceu reconfortante e aliviando a secura da boca. Prata. Águas da Prata. Interior do estado de São Paulo. Água pesada, alcalina, de gosto forte. Água não deveria ter gosto. Mas tem. Sabia distinguir a água mineira de São Lourenço, levemente sulfurosa, da procedente de Lindóia, também paulista. Eram amenidades e até pensamentos sem importância que alimentava para diminuir a urgência da situação. Flagrava-se a todo momento olhando no espelho retrovisor,a verificar se estava sendo seguido. Não confiava em Alberto. Discutira com Lívia a chantagem sofrida, e a primeira intenção desta, foi tentar entrar em contacto com seu braço do movimento clandestino. Leo argumentou que não haveria tempo para qualquer providência dessa natureza. Também que o movimento nessa fase estava muito enfraquecido e não teria condições de protegê-los. Não havia sequer tempo para um plano de fuga com apoio dos guerrilheiros. E ainda havia as condições físicas de Sérgio. Agora, mais do que nunca o jamais o deixaria entregue à sanha de Alberto. Teriam que agir por si mesmos. Conseguir os dólares até que não era muito difícil. Os anos de medicina em Campo Grande tornaram Leo, por ser sozinho, um homem de posses. O mais difícil, mas também o mais importante era tentar neutralizar Alberto. Uma vez que este recebesse o dinheiro, nada o impediria de romper o acordo. A não ser que... ¨¨ ¨¨ ¨¨ ¨¨ Decorrido o prazo,um jipe de cor oliva do exército apanhou Leo. Escoltado por dois PM foi reconduzido à Casa de Detenção. Ainda abatido pelos acontecimentos do dia anterior, subiu as escadas de madeira encardida e foi deixado na sala de reuniões. Alberto entrou. Deparou-se com os olhos insones de Leo. Entretanto,deixando perceber uma condição estranha. Diferente da fragilidade habitual. Uma indefinível impressão de fôrça nunca antes antevista. Firmeza.Ostensivamente exibia uma postura de resistência que atingiu Alberto inesperadamente. Quase que o tirando de seu prumo. De sua habitual segurança. Cautelosamente Alberto iniciou o diálogo, procurando advinhar de onde vinha a inesperada firmeza do médico. Este rispidamente cortou o interlocutor, demonstrando que não estava ali para nenhum tipo de amenidade. Perguntou diretamente quais eram as pretensões do militar. Cem mil dólares americanos. Leo argumentou que não dispunha de tal soma. E sobre a dificuldade de levantar a quantia a curto prazo. Teria que liquidar parte de seu patrimônio. Alberto irrevogável ainda pressionou, usando a força de um mandato de prisão preventiva. Mais ainda sua disposição de acabar com o que restava de vida de Sérgio. Leo sem se conter mais, levantou-se inesperadamente e esbofeteou violentamente Alberto. Este, a face lívida, agora marcada, recuou e, sacando sua pistola de serviço, apontou-a trêmulo para o oponente. Antes que pudesse disparar, Leo tranquilamente sentou-se e expôs com clareza, que qualquer ato de violência contra ele ou Sérgio inviabilizaria completamente qualquer tipo de acordo. Lentamente ante um Alberto descontrolado e confuso apresentou suas condições. Sérgio teria tratamento médico imediato e seria libertado. Ou pelo menos seria removido clandestinamente da Casa Detenção. Leo e o amigo receberiam documentos legais e um salvo conduto que lhes permitisse sair de Campo Grande e também do país. E a certeza de que não seriam perseguidos ou capturados pela polícia política ou pelo exército. Era isso ou nada. Não deixou a Alberto qualquer escolha. O dinheiro seria trocado em local seguro por Sérgio e os documentos que facilitassem a fuga. Qualquer fator que comprometesse a integridade física dos dois amigos, ou que resultasse em sua captura resultaria na perda dos dólares. E assim os planos e o futuro de Alberto estariam definitivamente enterrados. O militar espumava de cólera. Chegou a brandir a arma para agredir Leo, que, impassível, continuou sentado. Demonstrando sua definitiva posição. Considerara acertadamente que Alberto tinha somente aquela opção para esperar por um futuro sem submissão à incapacidade. Para o militar, que sempre vivera a arrogância da impunidade, um futuro doentio, miserável e solitário representava uma sentença de morte. E assim Leo acertou com Alberto o plano de fuga previamente combinado com Lívia. Esta finalmente também estaria acertando suas contas com Alberto. Disfarçado de motorista de ambulância e acompanhado em pessoa por Alberto, Leo entrou na enfermaria da Casa de Detenção. Ali por sua exigência, nos últimos dias Sérgio recebera cuidados médicos, mas ainda se apresentava em condições deploráveis. Alberto tinha realizado um magnífico trabalho de degradação humana através da tortura. Corpo e alma quase esfacelados. Torporoso,mantinha-se completamente ausente, sem qualquer consciência do que acontecia. Não dava demonstrações de reconhecer nada nem ninguém. Sem deixar-se levar pelas emoções, auxiliado pelo enfermeiro responsável pelo plantão noturno, Leo por intimação de Alberto conduziu o corpo do amigo em uma maca. Atravessando o pátio iluminado por uma grande lua amarela, lua cheia, dirigiu-se à ambulância comprida, modelo recente da Chevrolet, estacionada próximo ao prédio central, onde uma enfermeira de cabelos curtos claros aguardava com uma maleta de instrumental médico na mão. Sérgio foi transferido para a ambulância enquanto a enfermeira assinava os papéis referentes à transferência do preso para a Santa Casa de Campo Grande. A enfermeira sentou-se atrás com Sérgio, fazendo uma checagem de seus sinais vitais. Alberto, conforme o combinado, sentou-se no banco da frente, ao lado do motorista. Sem ligar a sirene, a ambulância cortou as ruas da cidade, quase desertas naquela hora da noite, escoltada por dois batedores em motocicletas. Ao entrarem no estacionamento do Pronto Socorro, os batedores esperaram em suas motos no lado de fora. A maleta de instrumental médico foi passada para Alberto. Este rapidamente a tomou, abrindo desajeitadamente o fecho. Um sorriso de triunfo cortou-lhe a face, esticando a pele marcada por cicatrizes de acne. Uma excitação quase inebriante o acometeu. Seu futuro estava ali. Em suas mãos. Por um breve momento deixou-se levar pelo sucesso de seus planos. O suficiente para perceber apenas tarde demais a picada da agulha hipodérmica em seu pescoço. A expressão compenetrada da enfermeira, a visão da seringa vazia, um aquecimento lento a subir-lhe pelas pernas, envolvendo-lhe todo o corpo, e logo após a indefinível sensação de uma mergulho profundo na escuridão total. O corpo de Sérgio foi transferido para uma segunda ambulância, de modelo diferente, agora uma Kombi, estacionada ao lado. Leo e Lívia derramaram uma garrafa de uísque barato, contrabandeado do Paraguai no uniforme de Alberto. Fizeram antes com que vários goles fossem vertidos garganta abaixo. Em seguida, colocando o corpo estatelado de Alberto em um carrinho, levaram-no para o pronto atendimento. Para ser atendido pelos efeitos de uma presumível noite monumental no bordel da cidade. Tiveram também o cuidado de fechar a maleta, e prende-la com um bracelete de metal ao punho do militar. Este, ao se recuperar, teria muito com o que se preocupar. Mas também teria o seu silêncio comprado pelos dólares contidos na maleta. Sem esperar pelo médico de plantão, e as informações que necessariamente deveriam ser dadas, Leo e Lívia entraram na Kombi. A uma velocidade segura, passaram pelos batedores que aguardavam na saída do estacionamento sem despertar suspeitas. Estes mal sabiam, que após algumas horas de espera, estariam conduzindo seu superior para casa, em péssimas condições, como se estivesse passando por uma ressaca, como há muito não viam. Sem condições de lembrar-se de quase nada. Sem condições também de tomar qualquer medida, capaz de deter os fugitivos. Algumas ruas além, Lívia desceu da Kombi, trocando o uniforme de enfermeira por jeans e camiseta leve. Entrou no Mercury azul de Leo estacionado discretamente em um posto de gasolina, e dirigiu-se para casa. Passou o resto da noite tingindo os cabelos de castanho-escuro com toques avermelhados. Preparou uma maleta com duas mudas de roupa. Tomou um café forte e voltou ao hospital. A turma da manhã ainda não havia chegado. Apenas os responsáveis pela limpeza terminavam a faxina do dia. Dirigiu-se ao seu armário. Sem pressa apanhou uma mochila com roupas leves e uma grande soma em dinheiro vivo que Leo lhe havia entregado, especialmente para um momento como aquele, e saiu. Os saltos anabela tirando sons ritmados do piso recém-limpo. Entrou no Mercury azul, e dirigiu sem parar. Os primeiros raios de sol, prometendo uma manhã acalorada, indicavam-lhe o rumo de Goiânia.

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