quinta-feira, 12 de julho de 2012

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 4) 1970: LIVIA TIAGO E RODOLFO

1970 - Lívia As ruidosas pancadas na porta do apartamento, despertaram Lívia de seu sono inquieto. Dormia só. Havia algum tempo que não compartilhava seu leito com homem nenhum.Atravessava uma fase de sua vida onde o sexo era irrelevante. Aliás, nunca fora muito feliz com seus parceiros. Sempre ficava uma sensação de prazer não realizado. Talvez culpa por ter se entregado sempre sem muita convicção. Como se simplesmente estivesse cumprindo uma agenda, sem planejamento estratégico, até sem emoção. Quase sem sobressaltos, vivera uma infância desprovida de dificuldades, criada por pais de bom nível social. O pai, empresário de sucesso no interior de São Paulo, do tipo sabe-tudo-sobre–todos-os temas, era o genro preferido de todos os pais. Após alguns anos, durante os quais espoliou sua empresa, deu um golpe na praça e abandonou à míngua mulher e três filhas, sem qualquer motivo aparente. Mudou-se para Los Angeles, onde por anos viveu misteriosamente. Com notícias as mais desencontradas, tais como viver com um amigo aidético, e, deste modo, dizendo não poder mandar recursos para a família, nem receber qualquer visita. E assim, anos a fio a família abandonada sobreviveu iludida, sempre com esperança. E o pai era apenas uma sombra distante. Cada vez mais apagada. Após treze anos chamou uma das filhas para auxilia-lo a abrir um restaurante. A filha do meio aceitou o convite. Exatamente a que menos se imaginava. Contudo, surpreendeu a todos, principalmente o pai. Que, de repente, de pai passou a avô. A gravidez, consumada na Brasil, somente foi revelada após quatro semanas de convívio com o pai. Este, inicialmente atônito, fez-se de avô, sorriso amarelo, como se nada houvesse. Inclusive encaminhou-a para ser atendida na mesma clínica que executara um aborto em uma de suas cozinheiras. O comportamento complacente da mãe e das irmãs irritaram profundamente Lívia, que praticamente passou a ignorá-las, afastando-se por completo. O cenário de sua vida estava mudando. Radicalmente. Para ela o pai já não existia há muito. Mesmo porque na situação deprimente que o pais atravessava, face à mão de ferro da ditadura, as questões familiares acabavam ficando menos importantes. A duras penas acabou terminando o curso de Direito. E graças ao relacionamento com Glória, sua prima, freqüentava o grupo da Medicina, mantendo com Tiago um relacionamento alegre e quase estável. Até a festa de fim-de-ano de 1968. Passara boa parte, dela conhecendo um pessoal que chegara à festa para transformá-la em palco de reivindicações sociais, e confrontos com os intelectuais presentes. Depois de alguns baseados, apagara completamente. Voltou à normalidade apenas na manhã seguinte após o banho de mar. Curiosamente, sem saber como, ocorrera um certo desmembramento daquele alegre grupo. Leo logo após a formatura acabara desaparecendo sem deixar notícias. Alguém recentemente comentara que tinha se dirigido para o interior do planalto central, após especializar-se em oftalmologia. Glória continuara no Rio durante algum tempo, e após alguns meses viajara para Paris. Sérgio desaparecera. Dizia-se que estava envolvido com o movimento clandestino armado. Tiago ainda permanecia no Rio. Assumira um cargo de docente na Universidade. E ainda se mantinha ligado aos ideais universitários de democracia social, liberdade, justiça e dignidade. Também continuava caído por ela. Mas já havia quase um ano que não se encontravam. As batidas na porta finalmente fizeram com que Lívia, ainda em roupas de dormir, lentamente atravessasse seu pequeno apartamento, cuja duvidosa organização fazia supor o descaso da moradora. Ainda sob o torpor de um sono não reparador, surpresa, defrontou-se com a assustada e pálida face de Lia. Irmã de Tiago, sua antiga colega de classe na faculdade de Direito. Após o espanto inicial, notou as olheiras e a expressão aflita da amiga. Descompassadamente,e já em prantos, contou a Lívia que Tiago, após uma série de conferências na Universidade havia sido preso pelos agentes do Departamento de Ordem Política e Social. Para um interrogatório de rotina, dizia-se. Só que estava desaparecido havia já uma semana. Sem saber o que fazer, procurara aquela que sempre esteve presente nos sonhos do irmão, Lívia. * O interrogatório. Um luz focada permanentemente no rosto. Quatro ou cinco interrogadores martelando o homem constantemente. Ele fica lá sentado. Já não sabia há quanto tempo estava lá.Horas ou dias. A rotina se repetia incansavelmente. Quando um interrogador cansava, logo era substituído por outro. No início tinha procurado responder às perguntas com tranquilidade. Mas logo no início uma série de bofetadas fê-lo sentir toda a arbitrariedade da situação. Também toda a sua impotência. Já o sangue tinha se coagulado em seu rosto. O supercílio cortado, a face inchada, com hematomas. Os interrogadores procuravam retirar dele, brutalmente, informações que não tinha. Não era um militante ativista. Havia se filiado clandestinamente ao PC do B. Mas não tinha nada a ver com as atividades armadas do partido. Apenas procurava transmitir aos alunos os conceitos de dignidade social, a serem aplicados mesmo às classes menos favorecidas. Estava agora nu. O corpo machucado, queimado por pontas de cigarro. Mantinha-se enfraquecido, sentado na cadeira tosca apenas porque se encontrava amarrado a ela, as mãos presas às costas. Lembrava-se vagamente de ter sido submetido ao pau-de arara, e recebido choques elétricos que quase acabaram com sua sanidade. Aos poucos as imagens se embaralharam e tudo se esvaiu em direção a um profundo vazio. Depois a cela úmida, o piso irregular e fétido. Fezes e urina de ratos. Misturados ao odor de seus próprios dejetos. O jato de água gelada na madrugada sempre o despertava abruptamente. Em seguida, a dor e a incerteza dos próximos momentos. DE longe em longe, vinham-lhe as lembranças da pequena Jarapatinga, onde nascera. Um lugarejo entre a orla da praia de águas escandalosamente verdes e o coqueiral. Um conjunto de casas térreas, quase sempre geminadas, na arquitetura porta-duas janelas, paredes claras, dando para a pracinha da matriz. Todas as manhãs o aroma penetrante do café forte, no coador de pano sobre o fogão-à-lenha, a manteiga cremosa e a presença sempre suave da mãe. Era o mais novo dos três irmãos. Há muitos anos não sabia mais deles. Desde que sua vida de adolescente desmoronou. O pai sempre distante, origem humilde, filho de lenheiro, soube, entretanto como se fazer na vida. Trabalhando como faz-tudo para os usineiros da região, com os anos conseguiu amealhar um patrimônio considerável para os padrões da cidade. Tornou-se agricultor. Extremamente machista,tinha a mulher para uso e os filhos como uma pedra nos sapatos. À medida em que a sorte mais o beneficiava, isolava-se cada vez mais, procurando curtir a vida em toda a sua plenitude, como se não tivesse família. Nessa sucessão de prazeres fáceis e sempe disponíveis, acabou se engajando em um extravagante caso de amor, tema predileto de todos os mexericos de Jarapatinga. Um dia a esposa foi descoberta morta, atirada ao poço de sua própria casa. As diligências nunca chegaram a descobrir o autor do crime. Contudo, era voz corrente que o assassino ou o mandante tinha sido o próprio marido. A familia da morta, indignada embora sem nada poder fazer, recolheu os filhos, tomando a si a responsabilidade de criá-los. Passou-se muito tempo antes que Tiago retornasse à pequena Jarapatinga. Quando o fez, já adulto, ainda se encantou com o verde do mar e a tranquilidade do lugarejo, agora já maior e mais próspero. A casa onde nascera dera lugar à agência local do Banco do Brasil. O pai se casara novamente já há vários anos, e tivera outros filhos. Chegou até a conhecê-los. Afinal eram inocentes. Decidiu refazer sua vida. E de novo o Rio de Janeiro acolheu mais um passado a ser sepultado. Uma nova vida. Com valores mais dignos e menos egoístas. De novo a porta se abre e ele é arrastado para outra cela. Sem qualquer mobilário. Atirado ao chão, percebe de novo a luz forte. Agora iluminando intensamente todo o cubículo. Uma gravação com voz de falsete entoa continuadamente uma ladainha de perguntas que se repetem indefinidamente. Mal consegue continuar a entender os sons. Palavras esparsas como Xambioá, Ângelo Arroyo, Bacabas, Caximbeiro se repetiam sem que para ele tivessem qualquer sentido. Horas ou dias, que para ele pareceram meses, a tortura pela falta de sono. A luz queimando-lhe os olhos. Por fim a inconsciência. Acordou. Parecia noite. Não tinha certeza. Sentia apenas solavancos do carro em uma estrada irregular, preso no porta-malas. O carro fez muitas curvas até parar. Foi puxado para fora e lançado ao chão. A cabeça estourando contra o piso de pedra.O cano frio de uma arma, torturando-lhe o ouvido. As palavras frias - Chegou sua hora! – O estalido do gatilho. E uma gargalhada. Percebeu após algum tempo, que lhe pareceu uma eternidade, que tudo não passava de uma cruel simulação.Tiago permaneceu estirado no chão. Trêmulo, as calças molhadas de urina. Sentindo-se menos que um verme. Mas apesar de todas as humilhações sentia-se vivo. Ouvia o barulho do motor do carro desaparecendo na noite. Fora sua primeira prisão. Jurara a si mesmo que nunca mais seria preso. Como nunca mais seria o mesmo outra vez. Perdera a ingenuidade da inocência. Perdera a confiança na justiça. Sua dignidade. A vontade de retornar à antiga rotina. Nunca mais as aulas para as jovens mentes. Amarradas pela censura e congeladas pelo comportamento estereotipado,determinado pelos limites impostos pela nova ordem social militarizada. Na realidade seus inquisidores sacrificaram o professor no altar da intolerância e truculência, para fazer despertar um novo homem, disposto a defender os princípios de justiça social, com o que ainda lhe restava de dignidade humana. Apenas uma imagem lhe transmitia um pouco de esperança – Lívia. Tudo o mais – apenas um futuro incerto. 1970 - RODOLFO Sua vida sempre fora normal. Sem grandes lances de emoção. Que não as da própria sobrevivência. Procedente do interior do estado de São Paulo, oriundo de família de médias posses, entretanto nunca lhe faltou nada. Família sólida, pais unidos até a morte, vivendo felizes a seu modo. Irmãs solidárias, fizeram de seus primeiros anos um cenário ideal para a construção de um caráter firme. Entretanto por vezes assediado pela ambição, medida, mas sempre presente. Desde que se entendeu como gente assumiu a vocação de médico. Não soube nunca desde quando ou porque. Simplesmente queria. E sempre lutou para isso. Sua infância e adolescência resumiram-se na rotina de se preparar para um futuro melhor. Eventualmente com dificuldades, mas sempre com obstinação. Sua maior arma. O destino lhe foi complacente e chegou a formar-se médico em uma das melhores escolas do país. Em uma época conturbada, onde o país desfalecia, sob o jugo da ditadura militar. Nunca se envolvera muito com a política. Mais tarde até se arrependeria muito disso. Ao contrário, procurou até se alienar de tudo o que ocorria, apenas no propósito de se tornar um bom médico. Mas mesmo assim deu sua colaboração ao movimento, tímida, mas concreta, participando de passeatas reivindicatórias de melhores condições de vida e liberdade democrática, quase sempre dissolvidas pela violência da polícia militar. Manteve-se, porém, sempre consciente da insegurança política e social, própria de sua época. Um de seus colegas de turma, exatamente um dos mais inflamados, na realidade mais tarde revelou-se um olheiro das autoridades legalistas. Conheceu Glória em uma das viagens que fez ao Rio de Janeiro, durante um curso de aperfeiçoamento, apresentada pelo primo Sérgio. E ficou fortemente impressionado pela personalidade forte e extrovertida da jovem. Sedutoramente confiante em si mesma. Saíam juntos com frequência, e logo conheceu os demais membros do grupo, afinando-se muito com Lívia e Tiago. Foram meses de alegre convívio, e grandes momentos. Até o final do ano. Invadiram como penetras a maior festa de final de ano do Rio de Janeiro. Muita política, arte e futilidades, temperadas a bebida, drogas e sexo. Ninguém saiu imune dessa experiência. Nem mesmo ele e seus amigos. O rescaldo de uma noite de fortes e incontidas emoções deixou marcas indeléveis em todos. E, na época, o afastou de Glória. Por sua ficha sem antecedentes no Departamento de Ordem Política e Social, o onipresente DOPS, Rodolfo atravessara incólume os ventos da ditadura militar. Ao contrário, seu prestígio como médico competente e acima de qualquer suspeita trazia-lhe livre passagem por entre os meandros da ordem instituída. Assim sendo, podia auxiliar os amigos, injustamente indiciados e, agindo taticamente, abrir-lhes as portas da prisão. Foi a ele que Lívia se dirigiu logo soube do desaparecimento de Tiago. Em meio à madrugada, Rodolfo ouviu consternado o ocorrido, imaginando a gravidade das acusações sobre Tiago. Nunca houve evidências de qualquer vínculo com a resistência armada. Entretanto as aulas e palestras tinham ficado cada vez mais críticas em relação ao regime militar e à autoridade constituída. Progressivamente Tiago tinha dado asas ao perigoso dom da eloquência, em uma fase onde este era uma arma importante, principalmente se alimentando mentes jovens e explosivas. Não foi fácil descobrir o paradeiro do amigo. Teve que peregrinar dias, acionando contactos, principalmente na Marinha. Estes acionaram o Ministério do Exército, e finalmente abriram os arquivos do DOPS. Tiago estava catalogado na categoria de suspeitos ativistas intelectuais, perigosos, mas ainda não definitivamente incluídos na lista dos caçados, acima de qualquer intervenção. Os ativistas mais perigosos eram sumariamente caçados, e desapareciam simplesmente. Uma pesquisa sistematica nos núcleos de investigação e interrogatório do DOPS, ao cabo de algumas semanas, trouxe a informação desejada. Com tato e até suborno, trazendo sob sua responsabilidade o comportamento futuro do amigo, Rodolfo, a duras penas, conseguiu a liberação de Tiago. Esta intervenção, porém, custou-lhe caro. Passou a ser estreitamente vigiado pelos agentes da ditadura. Até mesmo no exercício da Medicina. Eventualmente até entre pacientes havia agentes infiltrados, sempre ávidos por flagrar qualquer tipo de irregularidade. Acabou por aceitar o convite de uma universidade em Lyon, para um curso de pós-graduação de dois anos. Até quase nào havia necessidade disto, entretanto, os ares do Brasil estavam quase irrespiráveis. Foi assim que partiu para um exílio forçado. Também para um inesperado reencontro.

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