quinta-feira, 12 de julho de 2012

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 2)

A viagem de Leo Leopoldo Augusto dos Anjos nascera em Formoso, ao pé da Serra da Bocaina, em um estreito vale, cujas pedregosas escarpas mal permitiam a criação de mirradas vacas leiteiras. Muitos de seus amigos ali nasceram, e nunca tiveram outros horizontes, que não os limites daquele punhado de terra. A vida transcorria lenta e quase sem sobressaltos. A lida na roça, monótona e estafante, e a falta de opções na pequena cidade do interior formavam jovens desprovidos de maiores ambições, que não fossem às relacionadas ao seu restrito universo. Nada além da serra. As quatro ruas que formavam o quadrilátero da cidade, com casas na maioria geminadas, abrigavam quase sempre almas acomodadas, porém, quase felizes. A bebida tornava os fins de semana mais animados, e os dois bares na praça central da matriz sempre estavam ruidosamente cheios,para aflição do pároco local. Batina surrada e boina na cabeça, o padre Lara diariamente percorria as ruas, visitando as casas e procurando alcançar e manter o seu rebanho unido e longe das tentações. Longe também da velha Josefa, poderosa benzedeira, cujas mezinhas eram rotineiramente procuradas. Principalmente pelos que não conseguiam comprar os remédios vendidos na farmácia do Oscar. Dizia-se também que seus benzimentos afastavam o mau-olhado e protegiam contra os malfeitos. Resolviam até problemas de amor. Havia gente graúda na cidade, que, antes de realizar qualquer negócio, ia pedir orientação para ela. E apesar de tudo continuava vivendo quase na penúria. Cultivava o hábito de diariamente visitar bem cedinho o velho cemitério dos escravos. Toscamente mantido num pequeno terreno, no fim de um beco-sem-saída, cercado por grades baixas e enferrujadas, carcomidas pelo tempo. Já nas primeiras horas da manhã, quase ao nascer do sol, podia ser vista, caminhando lentamente por entre as poucas e rústicas sepulturas, arrancando tiriricas e murmurando runas indecifráveis. Chuva ou sol, sempre lá estava ela todas as manhãs. Nunca se soube de qualquer família, ou de qualquer acontecimento em toda a sua longa vida. Simplesmente ela estava lá. E há muito tempo. Leo passou sua infância e adolecência nesse cenário de horizontes restritos, e ainda carregando predestinadamente a aura cinzenta de seu homônimo – Augusto dos Anjos – poeta funéreo, morto em plena juventude pela tuberculose. Seus Versos Íntimos já prenunciavam o peso de toda uma vida : Ves! ninguém assistiu ao formidável enterro de sua última quimera. Somente a ingratidão, esta pantera, foi tua companheira inseparável. Acostuma-te a lama que espera o homem, que nesta terra miserável vive entre feras, e sente a inevitável vontade de também ser fera. Toma um fósforo. acenda teu cigarro; o beijo, amigo, é a véspera do escarro, a mão que afaga é a mesma que apedreja. Se alguém ainda causa pena a tua chaga, apredeja esta mão vil que te afaga, escarra nesta boca que te beija. Na realidade estes versos acompanharam Leo durante toda a sua vida, como que vaticinando uma existência solitária e quase tão amarga quanto foi a do poeta. Teve dois irmãos. Ambos extrovertidos. Até demais. Analucia, sua irmã mais velha passou a revelar um comportamento misógeno, e mais tarde assumindo-se lésbica. O futuro também lhe trouxe outras marcas. Como se toda a família carregasse uma predisposição genética comportamental. O irmão mais velho morto alguns anos depois com imunodeficiência adquirida. O outro homossexual discretamente assumido. Contudo, fadado a responder amargamente por suas opções. Certa noite, ao sair de um motel, distraído, colidiu frontalmente com uma moto. Politraumatizado foi conduzido inconsciente ao hospital. Após algumas semanas despertou do coma. Apenas para se defrontar com toda a extensão da tragédia. Morte dos dois irmãos que trafegavam na moto. O jovem amante, ferido no acidente, teve uma perna amputada. E pelo resto da vida amargou o estigma social e a incapacidade física. No lugarejo tudo se espalhou como um estopim, arrasando as famílias envolvidas. O pai dos rapazes, em desespero, invadiu o hospital, armado, buscando vingança. Por muito pouco não conseguiu o seu intento. A esposa e os filhos repudiaram o infeliz transgressor, mas não tiveram outra saída, que não transportá-lo para casa, enquanto lentamente se recuperava. Fisicamente, porque da alma e na sociedade nunca mais se recuperou. Leo se impôs a absoluta convicção de se afastar de todo esse cenário. Dedicou-se cegamente a esse intento, como se nada mais na vida tivesse qualquer importância. No íntimo, temia pelo seu futuro, mais pela sanidade de seu espírito. As derrotas e vicissitudes familiares o perseguiam, massacrando qualquer manifestação de prazer ou alegria. Um universo sem cor, sem esperança. Após anos de muita luta, e mais insucessos que vitórias, conseguiu ingressar na Faculdade de Medicina, no Rio de Janeiro. Onde conheceu Glória. Passou a fazer parte de seu grupo de amigos alegres e descompromissados. No início, era o acorde dissonante do grupo. Pouco a pouco, foi assimilado, encontrando-se a si mesmo, e nesse clima experimentar até momentos de calma felicidade. O menino de infância recolhida, crescido no estreito vale, no lugarejo sem horizontes, com uma família de trágicos antecedentes, sobreviveu na cidade grande. Rio de Janeiro, a sedutora meca de todas as fantasias e realidades imprevisíveis, acolheu Leo. Em um curso de exigências extremas, sua formação profissional se desenvolveu afastando os temores e deixando de lado as desventuras de seu passado. Bem apessoado, era assediado pelas mulheres. Contudo, nunca chegou a estabelecer qualquer relacionamento estável. Mantinha-se ocupado e aparentemente feliz. Sensibilidade à flor da pele geralmente deixava-se envolver pelos problemas de seus pacientes, dedicando-se a eles além de seus limites. Apenas a convivência com Glória e seus amigos mantinha Leo dentro de um clima de sociabilidade aceitável. Era com eles que se refugiava quando a rotina se tornava massacrante. E era sobretudo Glória quem conseguia despertar as emoções contidas. E tudo corria até sem contratempos. Até aquele final de ano. Fora de Glória a idéia de invadir a festa de arromba, anunciada para a mansão do Jardim Botânico em 1968. Chegaram logo depois das 23 horas. Celebridades, socialites, políticos, empresários, artistas e até ilustres desconhecidos compunham uma fauna de freqüentadores, que, embalados por muito álcool e drogas, compunham um cenário de liberação irrefreada. Uma festa que traduzia todo o clima de revolução sexual então vigente. Os jovens amigos prontamente aderiram ao clima da festa, com todo o entusiasmo de seus jovens anos. Em uma fase histórica de repressão política oprimindo todo o país, a festa e a possibilidade de conviver com expoentes literários e das artes, participando inclusive de sua intimidade, era um momento único. Em determinado momento, após muitas rodadas de uísque, Leo surpreendeu-se em um dos cômodos da casa a beijar voluptuosamente Glória, envolvido por um carrossel de emoções incontidas.Atracaram-se freneticamente, carícias cada vez mais ousadas, pele sobre pele. Corpos entrelaçados no suor, línguas dardejantes, apenas a expressão total e irrestrita dos sentidos. No frenesi da paixão, de repente a ansiedade e a consciência do ato que não seria finalizado. Glória retorcia-se convulsivamente na tentativa de despertar o macho adormecido. Angustiado e ainda sem controle da situação, Leo afastou-se humilhado. No exato momento em que a porta se abria com estrépito, para dar entrada a um Sérgio, completamente embriagado, arrastando consigo uma Lívia inconsciente. A atmosfera lúbrica e carregada de sexualidade reprimida contagiou o invasor, que, incontinenti , atirou-se sobre Glória, penetrando-a violentamente. Em meio às névoas do álcool, arrasado, Leo atônito via toda a sua integridade se desmoronar, como num pesadelo impossível. Arrasado. Humilhado, presenciava o corpo convulsionado de Glória, embriagada, corresponder ardorosamente às investidas de Sérgio, os olhos revirando, narinas e lábios dilatados, emitindo sons guturais, carregados de prazer.

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