quinta-feira, 12 de julho de 2012

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 12) EMPINANDO PIPAS

Alberto estava se preparando para sua viagem. Mas sem muita pressa. Oprimido ainda pela humilhação de ter sido derrotado pelo médico que Que neutralizara os seus planos e acabara fugindo, levando consigo Sérgio. Estes contavam com várias horas de vantagem, o que tornava muito difícil alcançá-los. A perseguição à fuga tornara-se quase inútil. Não haviam deixado pistas. Embora o aeroporto e a rodoviária tivessem sido fechados, e ninguém saísse de Campo Grande sem rigorosa investigação, Alberto pressentia que os fugitivos já estivessem longe, usando estradas vicinais, praticamente impossíveis de serem vigiadas. Essa situação de impotência queimava-o por dentro. Não entendia ainda como havia se deixado enganar. Mas ainda não encerrara o assunto. Prontamente procurou a intervenção da polícia social e política, solicitando ampla investigação sobre a vida pregressa de Leo. Cedo ou tarde uma pista surgiria que lhe permitisse capturar os fugitivos. E aí iria à forra. Os dias se passavam, e na pousada de Analucia, Sérgio se recuperava lentamente. Cicatrizava as feridas do corpo e da alma. Principalmente devido à dedicação de Leo. Este se esmerava em tudo fazer para acelerar a recuperação do amigo. Sabia que não poderiam ficar muito tempo naquele refúgio. Alberto não poderia ser despistado por muito tempo, pois tinha acesso ao sistema de informações da polícia social, que certamente acabaria localizando a pousada da irmã. E Leo conhecia muito bem o espirito vingativo do militar, que certamente não deixaria passar a oportunidade de prendê-los. Mesmo que isso pudesse resultar em prejuízo de sua própria visão. Contava apenas que a progressão da doença continuasse rápida, impedindo Alberto de continuar a perseguí-los. Passadas algumas semanas, Leo foi acordado no meio da noite pelo telefone que tocava insistentemente. Havia dado o número para Lívia para uma eventual emergência. E era exatamente ela. Aflita informou que seus contactos no partido em Campo Grande haviam-na procurado, dizendo ter Alberto finalmente localizado o paradeiro da irmã de Leo. Em seguida tinha se mobilizado para reiniciar a caçada aos fugitivos. Não havia tempo a perder. Deviam desaparecer rapidamente. Lívia também iria procurar um novo refúgio. E marcaram um local de contacto para dentro de dois meses. Um hotel em Santiago do Chile. Quem não conseguisse se contactar, era porque certamente teria sido apanhado e preso. Às carreiras, Leo acordou Sérgio, reuniu seus poucos pertences em duas maletas de mão, e despediu-se da irmã e da amiga. Dinheiro e passaportes na mão. Falsificados adequadamente para um momento como esse. A Caravan prata, roncando o motor, desapareceu na noite. Analucia por recomendação do irmão apagou todos os vestígios da presença dos dois. Pela estrada sinuosa, estreita e mal conservada Leo e Sérgio tomaram o rumo de São José do Barreiro, onde trocaram a Caravan por um jipe com tração nas quatro rodas. Este era um recurso que Leo já havia preparado para uma situação de emergência. Bem como a rota de fuga habilidosamente preparada. Já amanhecendo, subiram o íngreme e pedregoso caminho que conduzia ao alto da serra. Algumas horas depois chegaram à Pousada do Veado. Aconchegante chalé, paraíso para os que procurassem reclusão e íntimo contacto com a natureza. Registraram-se com nomes falsos, e após uma refeição à base de trutas e amendoas, seguida de uma reconfortante noite de sono, fecharam a conta e como turistas despreocupados, mochila nas costas, iniciaram uma trilha. O frescor da manhã, os sons e odores do amanhecer na serra estimularam os dois amigos. Enchendo os pulmões com o ar puro e frio, revigorados e esperançosos, embrenharam-se mato a dentro. Embora a rota tivesse sido detalhadamente planejada por Leo, a experiência anterior de Sérgio no Araguaia facilitou muito a árdua caminhada. A trilha de repente desapareceu. O que já esperavam. Embrenharam-se na mata, iniciando uma íngrime descida por um terreno desconhecido e bastante acidentado. Paravam a cada hora para descansar e rever a rota planejada. Não se depararam com nenhum animal de grande porte. Pássaros, muitos. Que enchiam a manhã com seus trinados. Macacos e até um veado. A caminhada tornava-se cada vez mais difícil. O que até lhes era interessante. Jamais alguém iria imaginar um trajeto tão difícil como rota de fuga. Principalmente para um médico não acostumado a grandes exercícios físicos, acompanhado de um fugitivo enfraquecido pela tortura. Pelo menos assim contavam ludibriar Alberto, que certamente já se encontrava em seu encalço. Acamparam rusticamente em uma pequena caverna em meio à descida e prepararam-se para passar a noite. A mata parecia viva. Os sons dos seres noturnos enchiam o ar, que mal parecia ultrapassar a copa das árvores que ocultavam parcialmente o céu estrelado. Leo não tinha nenhuma familiaridade com as manhas de acampar. Saco de dormir, chão duro, insetos noturnos nunca tinham feito parte de seu universo. Mesmo assim a estafante jornada do dia trouxe-lhe um sono pesado. Sérgio ressentia-se da longa caminhada. A caminhada através da mata trouxe-lhe à lembrança os tempos do Araguaia. Talvez por isso mesmo, em meio ao sono agitado que o acometeu novamente as visões voltaram. A figura esguia e alta, a barba por fazer, os olhos brilhantes, seu antigo companheiro de guerrilha voltava para assombrá-lo. O peito perfurado de balas, ainda o sangue vertendo, como se aquela imagem estivesse temporariamente congelada. Caminhava em sua direção dizendo-lhe algo. Mas as palavras eram inaudíveis. Sons que ecoavam mas não chegavam até ele, porque eram abafados por um outro barulho. Desagradavelmente familiar. Quase inimaginável naquele momento. O som das botas de cano alto de Alberto, aproximando-se rapidamente. Tentou levantar-se, mas mãos vigorosas o mantiveram no chão, enquanto outras o amordaçavam. Repentinamente a dor das sessões de tortura fez-se lembrar vividamente. Despertou banhado em suor. Aliviado pelo sol da manhã que se infiltrava pelas ramas das árvores. Permaneceu alguns minutos deitado, entregando-se àquele momento mágico. Sentindo-se vivo, livre e envolvido pela exuberância da mata despertada. Refeito, levantou-se lentamente e preparou um café forte. O amigo ainda dormia. Pensava em todas as reviravoltas de sua vida. Em sua juventude. Em como naqueles tempos descompromissados Leo tinha sido o alvo predileto de suas brincadeiras, nem sempre de bom gosto. E como os amigos formavam um grupo alegre e sempre disposto a viver intensamente. Mesmo naqueles anos de chumbo. A opressão política sempre presente. Violentamente limitante. Talvez exatamente por isso. Glória. A presença sempre sorridentemente inspiradora. Apaixonante. Nem tanto pela beleza. Mas pela ânsia de viver cada momento em toda a sua plenitude. Na realidade, era ela quem estimulava todo o grupo, contaminando-o com sua eterna disposição. E fora justamente através dela que ele ferira radicalmente Leo. Destruindo seus sonhos. Fazendo-o isolar-se para tentar um novo recomeço de vida. E fora justamente Leo quem o salvara. Arrancando-o das mãos de Alberto. Às custas de sua própria vida. Outra vez deixando tudo para trás, por ele, Sérgio, quem mais o ferira. Um homem de passado condenável. Em Goiânia, Lívia após avisar Leo de que Alberto retomara a perseguição, abalara-se em colocar-se também a salvo. A fuga de Campo Grande e o resgate de Sérgio haviam enfurecido o militar, que jamais imaginaria ter sido ludibriado pelos três amigos. Também nunca lhe passara pela cabeça abrir mão de Sérgio, para quem tinha reservado uma execução exemplar. Ainda que o tempo perdido na tentativa de recapturar os fugitivos pudesse lhe prejudicar o tratamento de seus olhos, que o incomodavam cada vez mais, não deixaria que ninguém o passasse para trás. Era uma questão de honra capturar e torturar o médico almofadinha e o guerrilheiro renegado. Lívia, juntando seus poucos pertences, e os dólares que Leo havia reservado para ela, exatamente para uma fuga rápida, fretou um monomotor e voou clandestinamente para Assunción, no Paraguai. Lá chegando, tentou permanecer sem despertar suspeitas, reclusa em um pequeno hotel, de onde após duas semanas conseguiu voar para Santiago do Chile. O Chile elegeu em 1967 Salvador Allende, médico e político de esquerda, constituindo-se no primeiro país ocidental a eleger democraticamente um presidente marxista. Mesmo após o golpe militar de 1973 e a tomada do governo pelo general Pinochet, Santiago continuava sendo, principalmente para os exilados políticos brasileiros, uma porta segura para as capitais da Europa. Com um pontapé Alberto arrombou a porta da pousada. Os soldados, invadindo a casa, acordaram com violência a única funcionária. Analucia e Dora, terrificadas, mal acreditavam no que acontecia. Felizmente não havia hóspedes. O dia se iniciava inesperadamente carregado de violência e medo.

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