quinta-feira, 12 de julho de 2012

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 8) A VOLTA DO PARAFUSO

Quando se aperta um parafuso, passo a passo ele perfura a madeira. A cada volta, imprime mais pressão, mais se aproxima do limite final. Sérgio estava no limite final de suas forças. Já havia perdido a noção do tempo. Sabia apenas que estava na Casa de Detenção. Contava os dias na cela escura, contando as sessões de tortura. Diariamente era levado à presença de Alberto, que todos os dias imaginava algo novo, especialmente para machucar-lhe a carne e a alma. Lentamente a consciência lhe voltava. Quanto tempo teria de aguentar desta vez? Não saberia dizer quanto decorrera desde o último interrogatório. Não o deixavam muito tempo em paz. Apenas o suficiente para que se recuperasse para recomeçar tudo outra vez. Aos poucos a névoa desaparecia de sua mente. E ele passou a perceber a dor. Que nunca o abandonava. Ele apenas passara a não respeitá-la. Começou a utilizar a dor como forma de resistência ao seu torturador.Que podia tentar, e tentava, esmagar o seu corpo. Mas sua mente, apesar de confusa e maltratada, esta ainda lhe pertencia.Assim como suas culpas. E seus pesadelos. Até passara a esperá-los. Eram o seu único contacto atual com a realidade. A sua realidade. Às vezes tinha a impressão de que Chico, ainda com os olhos faiscantes, indicava-lhe um caminho, que não era capaz de identificar. Ao abrir finalmente os olhos, percebeu que nada havia mudado. Nada a que não já estivesse se familiarizado. Os dedos das mãos haviam sido quebrados. Deixados para consolidar naturalmente. E então, novamente quebrados. As articulações subluxadas. Também não conseguia andar. Mas sua mente voava. Percorria todas as fases de sua vida. Visitava todos os seus amigos. Onde andaria Leo. Amargava em relação a ele um especial sentimento de remorso. Por todas as brincadeiras escarnecedoras, mais pelas humilhações infringidas. Penduraram Sérgio em uma trave no teto. Correias nos punhos, mantendo-o apoiado apenas nas pontas dos artelhos. Nu. Desta vez Alberto, ao entrar não estava só. Acompanhava-o um oficial também fardado, empunhando uma pasta de documentos. Um burocrata. Sérgio mirava Alberto, impressionado com o cuidado extremamente afetado com que o arrogante militar sempre cuidava de sua aparência. Engomado dos pés à cabeça. As botas de montaria sempre rigorosamente lustradas. Cujos bicos já lhes tinha quebrado várias costelas. Como poderia alguém tào cuidadoso consigo mesmo ser tão maligno? Esta sessão deveria mesmo ser diferente. Alberto não o tocara. Fizera ao acompanhante um relatório sucinto, mas comprometedor. Desde os tempos de Palestina, apresentando-o como um agente de campo do PC do B, responsável por inúmeras ações contra o exército, recentemente preso ao fomentar a violência em uma passeata ali em Campo Grande. Retirando um arquivo de sua pasta, o burocrata passou-a a Alberto, indagando se as impressões digitais conferiam, e se o interrogado era a mesma pessoa citada no arquivo. Conferindo, os olhos de Alberto se estreitaram, emitindo um brilho sinistro. Lancinantemente uma dor nova varou-lhe o peito ao ouvir os nomes de Tiago e Lia. Percebeu que ambos estavam ainda na lista negra da polícia social. Como e porque seus nomes foram vinculados ao dele, não tinha a menor idéia. Apenas, terrificado, entendia que, agora, além de prestar-se à satisfação dos instintos sádicos do torturador, haviam-lhe dado munição suficiente para que o processo de tortura continuasse indefinidamente. Se é que tinha esperanças. Elas acabavam de se esvair. Como o sangue na ferida do abdome de Chico. O burocrata endereçou-lhe algumas perguntas diretas. Sérgio, lambendo os lábios rachados com uma língua inchada, respondeu balbuciante, com uma voz quase inaudível. Realmente tinham sido amigos de juventude. Mas se separado há anos. Não tinha a menor idéia do seu paradeiro. Alberto perguntou ao burocrata informações que pudessem auxiliá-lo em seus próximos interrogatórios. Mas não havia nada. Apenas a ligação de Sérgio com Tiago, já interrogado uma vez no Rio de Janeiro, e atualmente desaparecido, juntamente com Lívia, sem deixar pistas. Foi deixado ali pendurado. Por cima do ombro percebeu o olhar faiscante que lhe endereçou Alberto ao sair da cela. Livia se recuperara mais depressa do que imaginava. A não ser por uma cicatriz na face, que não lhe comprometia a beleza sutil. Tentava esquecer as intensas emoções da passeata, os desmandos da repressão, e a figura cruel do cavalariano que a perseguira. Enquanto existissem figuras como ele, o país e o mundo nunca ficariam seguros. Continuariam à mercê da intolerância, preconceito e intransigência.Ela procurava, no momento, afastar esses pensamentos. Ademais havia Leo. A surpresa de reencontrá-lo só foi inferior à satisfação de constatar seu sucesso profissional e seu crescimento interior como pessoa. Tão diferente do jovem inseguro e contido de suas lembranças. Continuava introspectivo, e com a sensibilidade à flor da pele. Também morava sozinho e sem um relacionamento estável. Tinha amigos, que, contudo nunca conseguiam penetrar a couraça protetora que tornara sua segunda pele. A única brecha tinha sido ela, Lívia. Os anos que passaram juntos, a convivência próxima e a cumplicidade tiveram esse efeito. Nas semanas subsequentes, Leo foi suficientemente dedicado e carinhoso para que Lívia se sentisse outra vez estimada, e como se representasse algo para alguém. A solidão a que se impusera em Campo Grande tinha chegado ao fim. Era mais um recomeço. E ela tinha a percepção exata do que isso representava. Uma nova fonte de energia que lhe renovaria também as esperanças de reencontrar Tiago e a filha. Passaram a rotineiramente se encontrar, e assim Leo soube tudo sobre seus antigos amigos. Revoltou-se com a a prisão e tortura de Tiago. Como este perdera tudo, cargo e amigos no Rio de Janeiro. Emocionou-se com a notícia de que Lívia tinha uma filha. E também com o inesperado encontro de Tiago com o pai. Com o reatamento entre os dois. Fruto da dedicaçào e oportunismo do pai, que embora distante e enterrado pelos sentimentos de Tiago, no momento em que a jovem família mais necessitava, reapareceu como a única tábua de salvação. Evitando novamente a prisão,e até a tortura. Pelo menos pai e filha estavam a salvo em Paris. Exatamente onde Glória tinha se radicado. E próximo a Lyon onde também Rodolfo agora vivia. Até quando duraria essa separação não havia como imaginar. Tinha ciência apenas de que a vida era curta. Mas também que em momentos se pode viver toda uma vida. Ouvira essa frase em um filme antigo de Vitório Gassman – Perfume de mulher. Em verdade passara a ser um conceito de autoajuda nessa fase de sua vida. Ansiava e tinha a convicção absoluta que dias mais felizes ainda estavam por chegar. As semanas passavam e Leo cada vez mais se dedicava a Lívia, como que para compensar o longo período de separação. Ao mesmo tempo tentava procurar notícias não-oficiais dos amigos que viviam no exterior. Tomara a si o encargo de tudo fazer para que Lívia se reencontrasse com a família. Também porque isso lhe fazia bem e aliviava a sua solidão. Durante anos nada fizera para se reaproximar de seus irmãos. Mas com o tempo isso passou também a incomodá-lo. Tinha sido fácil, até mesmo cômodo, voltar as costas à família. Tudo porque a convivência lhe parecera então insuportável. Tinha apesar de tudo trocado cartas com o irmão. E,desde então, enviava-lhe mensalmente auxílio econômico. A irmã tinha se mudado para São Paulo, com endereço ignorado. Mas sabia-se estar bem. Tentara contactá-la sem resposta. Agora com o reaparecimento de Lívia tentava fazer dela sua família. Fazer por ela o que gostaria de ter conseguido fazer pelos irmãos. Também não se sentia mais tão só. Mas em momento algum pensou em convidar Lívia para morar com ele. Apenas fez com que ela abandonasse o emprego na gráfica, conseguindo-lhe uma colocação como escrevente no cartório local, de propriedade de um amigo. Lívia agradecida também se esforçava para ter em Leo um amigo muito querido. Protetor e confidente. E, neste propósito, algumas semanas após, contou a Leo seu reencontro com Sérgio. Com todos os detalhes. As tranformações no físico e na conduta. Seu comportamento arredio e sua solidão. Sua dedicação ao próximo. O mistério que cercava sua aparição em Campo Grande. Leo não podia acreditar no que ouvia. Seu antigo companheiro próximo a ele. E ao mesmo tempo tão distante. Tão diferente. Certamente deveria haver uma explicação para tudo. Mas também concordou com Lívia. As justificativas deveriam partir do próprio Sérgio, no momento mais adequado. Até lá também esperaria. Nas próximas semanas iria se certificar de tudo. Procuraria o amigo, forçando um encontro inesperado. Tentaria confortá-lo se fosse necessário. Abriria seus braços e seu coração para acolhê-lo. Tentaria compensar os maus tratos que a vida lhe teria inflingido. Mas não havia mais tempo para isso. Nunca conseguiu o seu intento. Naquela manhã, Leo recebera um convite para prestar esclarecimentos na sede da polícia política de Campo Grande. Na realidade, somente não tinha sido conduzido à revelia, por suas relações de amizade para com as autoridades locais. Aliás também pelo prestígio com que era considerado por quase todos seus pacientes. Mesmo assim tudo soava como uma convocação que não podia ser recusada. Preocupava-se porque agora que tinha Lívia sob sua tutela. Lívia e seu passado. Também agora Sérgio estava por perto. Na realidade, Lívia nunca mais o vira. O apartamento parecia vazio. No emprego também nunca mais Sérgio aparecera. Era como se tivesse sido tragado pela terra. Desaparecera sem deixar vestígios. Desmarcando as consultas do dia, Leo por precaução tratou de fazer um saque bancário, preparando uma maleta com o dinheiro. Entregou a maleta a Lívia, que a guardou em seu armário particular no hospital. Conversando, trataram de repassar os acontecimentos das últimas semanas, procurando algum ponto de apoio para qualquer desconfiança. Procuraram construir uma história que pudesse ser aceita sem desconfianças. Embora nada encontrassem que justificasse a convocação, prepararam-se para o pior. Ao cair da noite, Leo, conforme o combinado, estacionou seu carro cuidadosamente a uma quadra da delegacia. Procurando aparentar serenidade, foi conduzido a uma sala no segundo andar. Foi ali recebido pelo delegado local, que desculpando-se pelo transtorno, foi-lhe aos poucos endereçando perguntas, que mais pareceram a Leo, estratégia para comprometer a sua concentração. Perguntou-lhe sobre os atendimentos prestados aos manifestantes da passeata e ainda sobre seu eventual relacionamento com eles. Após uma hora do que lhe pareceu um interrogatório preambular, uma porta abriu-se para dar passagem a Alberto. Como sempre envergava um uniforme impecável, com as inseparáveis botas de montaria. Apresentou-se cordialmente como o chefe da polícia política local, e responsável por erradicar as atividades da guerrilha na região. Pedia desculpas pelo atraso. Contudo Leo tinha a certeza de ter sido por ele observado atentamente durante toda a primeira parte da entrevista. Provavelmente através de um espelho, colocado sem qualquer necessidade naquela sala. Alberto conduziu as perguntas para os anos que antecederam a chegada de Leo a Campo Grande. Repentinamente perguntou pelos amigos da universidade. Intimamente consternado, mas procurando manter um diálogo superficial e quase irreverente, respondeu superficialmente aquilo que já havia combinado com Lívia. Que logo após sua formatura, tinha abandonado o Rio de Janeiro, sem mais ter tido contacto com nenhum deles. Sabia entretanto, que os planos de um ou dois envolviam o desenvolvimento de cursos de pós-graduação no exterior. Quanto a ele, procedente de família modesta, tinha decidido clinicar no interior do país, aproveitando as oportunidades que uma cidade emergente oferecia. E acreditava ter sido bem sucedido em Campo Grande, que o acolhera com oportunidades únicas. Em toda a fase de renovação política pela qual o pais atravessava, concluira que a melhor maneira de serví-lo era trabalhar e atender seus pacientes com dedicação. Alberto ouviu-o atentamente. Olhos fixos e penetrantes. O esboço de um sorriso. Ao final, levantou-se, agradeceu polidamente o incômodo daquela entrevista. Apenas solicitou-lhe sutilmente que não abandonasse a cidade, sem comunicar-lhe. E que, se necessário, voltaria a chamá-lo. Uma ameaça velada. Um aviso de que Leo não estava ainda livre dele. Ao sair, Leo libertou toda a apreensão que lhe ia interiormente, percebendo o suor que lhe incomodava sob o paletó claro. Aquele militar, insuportavelmente arrogante, certamente sabia mais do que demonstrara. Talvez estivesse iniciando um jogo de gato-e-rato para, no momento mais oportuno, dar a sua estocada. Tinha que se preparar para os próximos dias. Tinha combinado com Lívia, que qualquer que fosse o resultado, nào tentaria entrar em contacto com ela. Certamente estaria agora sob vigilância. Dirigiu-se para casa. Contrariando todos os seus hábitos serviu-se de uma generosa dose de uísque. Geralmente não tomava álcool. De quando em quando um bom vinho, para regar um surubi na telha ou uma picanha na brasa. Naquela noite, entretanto, necessitava de algo mais forte para relaxar. Que tipo de informação motivara seu depoimento. A atenção aos manifestantes? Ou na verdade seu relacionamento com os antigos amigos, agora implicados na luta para a reisntalação da democracia. Na realidade, esta última proposta, na fase atual, soava como uma grande ilusão. Dormiu um sono entrecortado. Perdeu hora, levantou-se e dirigiu-se, como de hábito, ao hospital. De nenhum modo deveria alterar em nada sua rotina. Não poderia despertar qualquer suspeita. Reconhecia em Alberto um adversário aparentemente implacável. Obstinado e também dissimulado. Não deveria nunca ser subestimado. No hospital, ambiente acima de suspeitas, Lívia o esperava ansiosa para saber dos detalhes da entrevista. Chegou a preocupar-se, e muito, a partir da intervenção do cavalariano. Por um instante chegou a ligá-lo ao comandante das tropas que desbarataram a passeata, e que a agredira tão colericamente. Também não imaginava como estariam ligando Leo aos antigos companheiros. Logo saberia.

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