quinta-feira, 12 de julho de 2012

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 7) 1975 - PRIMEIROS REENCONTROS

Lívia movida por motivos que não conseguia explicar, nem para si mesma, não procurou Sérgio. Limitou-se a acompanhar de longe as atividades do ex-companheiro, discreta e quase imperceptivelmente. Seguiu-o por semanas, meses, até conhecer toda a sua rotina. Toda a sua vida. Era incrível a mudança. Nem de longe lembrava o jovem inconsequente e alegre de outros tempos. Trabalhava arduamente em um emprego que o consumia. Vestia-se quase com desleixo. Mas os olhos, estes sim revelavam uma mudança extraordinária. Tinham envelhecido. Na maioria das vêzes o olhar distante perdia-se no nada. Mesmo assim era bem conceituado,quase querido, tanto pelos colegas`de trabalho, quanto pelos doentes que atendia. Não parecia ter ambição nenhuma. Vivia dia após dia, apenas na espectativa do próximo dia. A única demonstração de procura por um objeto de desejo fora a compra de um pequeno apartamento no centro. Continuava sozinho. Aparentemente sem qualquer relacionamento, fosse feminino ou masculino. Nunca levava ninguém para casa. Um dia apareceu com um cachorro vira-latas. E com ele ficou. Eventualmente nas noites quentes de Campo Grande eram vistos passeando juntos. Tinha-se a impressão que Sérgio até conversava com o cão. Palavras que eram dirigidas apenas para ouvidos silenciosos. Também que não interpretavam ou julgavam. Apenas ouviam. Progressivamente estas longas confissões, sem resposta promoveram uma progressão positiva no seu modo de ser. Tornou-se um pouco mais afável, embora não sorrisse nunca. Lívia aos poucos se aproximou dos companheiros de trabalho, discretamente procurando saber o que acontecera com Sérgio. Mas ninguém sabia de nada. Apenas boatos. Surgira do nada em Campo Grande. Sem família. Sem amigos. Sem passado. De temperamento difícil, quase torturado limitava-se a executar o seu trabalho, porém com dedicação. Como se este fosse o seu único objetivo de vida. Lívia achou prudente não se revelar, e passou a acompanhar à distância os passos do antigo companheiro. Passou a admirar cada vez mais o novo comportamento de Sérgio. Uma feceta que nunca conhecera antes. Discreto, procurava desempenhar suas funções com altruísmo, tudo fazendo para confortar os infelizes que transportava em sua ambulância. Procurava simplesmente ser útil, sem sequer demonstrar sua identidade. Muito diferente do Sérgio de outros tempos. Embora Lívia cada vez mais se amargurasse com a ausência da família, vivendo absolutamente só, decidiu respeitar a decisão de Sérgio em relação à sua nova vida. Fossem quais fossem os motivos que o tivessem levado a tantas transformações, ela optou por respeitá-los. E manteve-se à distância. Simplesmente observando. Isto lhe trazia ao menos a impressão de não estar tão só. Além do mais continuava sendo extremamente perigoso tentar deixar o país. Os agentes federais vigiavam rigidamente aeroportos e postos de fronteira, ávidos por capturar qualquer suspeito de participar ou até mesmo simpatizar com a causa da resistência. O número de guerrilheiros desaparecidos em ação, ou ainda simplesmente suspeitos que deixavam sua casa para o trabalho, e deles não se tinha mais notícias, aumentava a cada dia. Mesmo com as evidências do progressivo enfraquecimento do movimento de guerrilha, mais arroxada era a perseguição imposta. Lívia entendia que a possibilidade de viajar e reencontrar a família estava ainda muito distante. Por seu lado, Sérgio, sempre só, jamais poderia imaginar estar tão próximo da amiga de sua juventude. Nem que ela estivesse igualmente passando por dias tão amargos. Mantinha-se atento e apreensivo. Não saberia quanto tempo ainda poderia manter sua identidade atual. A nova vida que escolhera. Esta o fazia sentir-se vivo. Contudo ainda assombrado pelos pesadelos de sempre. Certa manhã de agosto sua unidade foi chamada para recolher feridos em um confronto entre a população e a polícia do exército. Uma passeata que inicialmente deveria ter sido apenas uma manifestação pacífica, transformou-se em uma cena de brutalidade explícita. Degradante. Em meio a bombas de efeito moral, policiais portando escudos protetores haviam invadido o pátio da universidade e,sem controle, agrediam com longos cassetetes estudantes e transeuntes. Com brutal eficiência. O oficial em comando, montado em um cavalo castanho irriquieto, simplesmente deixava a violência correr solta, sem tomar qualquer medida preventiva. Simplesmente observava, com um sorriso rasgado no rosto. Sorriso frio e cruel. Cabelos pretos lisos sob o capacete branco. Subitamente ao ver uma jovem correr, fugindo da ação policial, esporeou o cavalo e com seu chicote de montaria fustigou a face da fugitiva assustada, derrubando-a, a cabeça violentamente colidindo com o asfalto. Incontinenti Sérgio correu para socorrê-la, impulsivamente. Protegendo-a com o seu corpo. Mal chegara a tocá-la, quando o agressor voltou à carga, agora golpeando repetidas vezes o dorso e a cabeça do paramédico. Com uma violência acima da já demonstrada. Ordens ríspidas fizeram com que Sérgio fosse arrastado para dentro de um camburão. Atirado como um saco de batatas, junto com outros feridos. Não demorou para que o camburão se dirigisse à Casa de Detenção, onde deixou sua carga. Como gado foram lançados em celas coletivas, já apinhadas. Não havia lugar para que permanecessem deitados. Tinham que permanecer em pé apesar de suas condições lastimáveis. Todos estavam muito machucados. As roupas rasgadas e tingidas pelo próprio sangue. Sérgio perdera de vista, atordoado e ferido, a mulher duramente espancada que procurara socorrer. Sequer tinha-lhe visto o rosto. Apenas os cabelos curtos e claros. Horas se passaram. Até que um forte jato de água, de uma mangueira manobrada por robustos carcereiros,varreu todos para o extenso pátio da prisão. Cercado de policiais militares fortemente armados. Ali ficaram sob o causticante sol da tarde, sem qualquer proteção. A noite caiu, e nada mudou. Sede e fome começaram a fazer os infelizes entrar em colapso e desfalecer. A guarda foi trocada. Durante toda a noite ficaram expostos no pátio. A partir das dez horas do dia seguinte, confusos e enfraquecidos, um a um foram conduzidos para interrogatório. Culpados ou inocentes, todos eram tratados igualmente. Vilmente. Como gado a ser conduzido ao matadouro. Ou a estábulos sem higiene. Alguns eram libertados após longas horas. Outros voltavam para a cela coletiva. Nenhum foi encaminhado para prestação de primeiros socorros. Sérgio testemunhava tudo com indifereça. Sofrendo. Mas para ele nada era novidade, depois de tudo o que havia presenciado em Palestina. Um a um foram conduzidos ao interrogatório, ao longo de todo o dia, noite a dentro. Até que restou no pátio apenas um Sérgio exausto. Para sua surpresa, e mais uma vez sem alimentação ou água, foi deixado sob vigia durante toda a noite. Pela manhã, alquebrado e quase inconsciente, aos ponta-pés foi levado para a sala do interrogatório. Apenas uma mesa no centro. Sentado sobre ela, de costas, fustigando levemente a bota com o chicote de montaria, o interrogador esperava pacientemente. Os olhos cansados e atordoados de Sérgio mal viam a silhueta. Mas o esgar maldoso, os cabelos lisos e untados de vaselina, e a voz! A voz jamais esquecida. Por tantas ordens descabidas e sentenças de morte pronunciadas com frieza. Até com irreverente arrogância. Um espectro do passado recente voltava para atormentá-lo impiedosamente. O tenente Alberto. Na noite anterior,Lívia trabalhava na gráfica fora do horário de expediente. Recebera uma incumbência do partido. Redigir e imprimir panfletos que denunciassem o processo sistemático de eliminação sem julgamento que o governo desenvolvia abertamente contra os remanescentes do movimento do Araguaia e seus colaboradores. Uma grande manifestação pacífica estava programada. E havia necessidade de que a comunidade fosse adequadamente informada sobre os motivos da passeata. Após várias tentativas,chegou a um texto conciso, que objetivamente, em uma só folha,informava e exortava a população a não aceitar aquela infração dos direitos de cidadania. Que as prisões até fossem feitas, mas sem brutalidade, e permitindo o direito a um julgamento adequado, e,se necessário,a justiça fosse feita com dignidade. Pensava que se tudo fosse assim resolvido, talvez até a resistência armada não se fizesse necessária.Pensava também em Tiago e em sua filha, que já deveria estar crescida. Talvez sequer a reconhecesse. Não se lembrava de Tiago ter levado qualquer fotografia sua. Já não tinha notícias há tempos. Não pudera acompanhar as suas primeiras palavras, as tentativas dos primeiros passos. Perdera todas essas experiências. As que todas as mães se orgulham e se encantam. Mas suas escolhas,nesses tempos de angústia e opressão, tinham traçado não o caminho da mãe carinhosa, mas o da cidadã ativista, digna de respeito, mas pobre e carente de afeto. Não se arrependia de nada. Até faria tudo de novo. Mas a saudade da família, de quando em quando lhe assolava a alma. Naquele mesmo momento, do outro lado do Atlântico, em um pequeno estúdio em Montmartre, atrás da place de Tertre, Tiago acordava carinhosamente a filha. Afagava-lhe o rosto miúdo, tão parecido com o da mãe. O peito oprimido pela saudade. A esperança de que tudo estivesse bem com Lívia. Na noite após a passeata Leo nunca estivera tão ocupado. Por coincidência era seu dia de plantão no hospital. O número de feridos no tumulto daquela manhã parecia não terminar. Apesar de não ter-se verificado nenhum ferimento de arma de fogo, havia as queimaduras provocadas pelas bombas lançadas pelo exército. Mas as contusões, principalmente cranianas, escoriações, traumatismos de face, fraturas de costelas e até de ossos da bacia testemunhavam toda a violência aplicada pela repressão policial. Toda vez que a ação policial se fazia presente com a brutalidade daquela manhã, pela freqüência dos traumatismos cranianos e oculares, Leo era chamado, por ser o oftalmologista mais experiente da região. Adquirira fama pela sua competência, e também por nunca recusar-se a atender um chamado, fosse a hora que fosse. Construira sua vida solitário, mas fazendo dos pacientes amigos e amiradores. Suas lembranças, entretanto mantinham-se vivas. Secretamente nunca se recuperara da dor provocada pela impotência, exatamente ao perder a única mulher por quem se interessara na vida. Glória. Que teria sido feito dela... Talvez casada e criando seus filhos na Europa. Uma realidade distante demais da sua. Não procurava pensar em Sérgio. O rancor inicial tinha se diluido com o tempo. Mas tinha sido ele o instrumento de sua maior desilusão, exatamente quando despertava para a vida. Tiago desaparecera com Lívia. Soube que havia sido exonerado do cargo que ocupava na universidade. Rodolfo havia se exilado temporariamente, não sabendo quando voltar. Mais uma vez estava sozinho. Mas na realidade sempre estivera. Tinha o seu trabalho. Mas faltavam-lhe os sonhos. De que vale o homem que não acalenta um sonho? Afastando conscientemente esses pensamentos, deu o ponto final na sutura do supercílio,que até bem pouco tempo atrás ainda sangrava. Retirando as luvas, passou para a sala ao lado para realizar uma enucleação. A vítima tinha sido agredida por um golpe de cassetete que lhe vazara o olho. Cabia a Leo a restauração da cavidade ocular. Pacientemente reiniciou seu trabalho, deixando para trás seus devaneios. Deitada na maca fria e dura, olhava a lâmpada do teto, a luminária com a pintura branca descascada. As paredes com barrado de azulejos brancos, encardidos. A janela protegida com telas anti-mosquitos. O ar condicionado, que já vira melhores dias, funcionando ruidosamente. Havia pouco recuperara a consciência. Estava na enfermaria de retaguarda do pronto-socorro municipal. Lotado. Os feridos na manifestação que deveria ser pacífica, uma passeata de renvindicação de legalidade, a ser aplicada pelo governo legalista, transformou-se em um caos, dado à violência da atuação da polícia. Lívia relembrou passo a passo sua atividades no dia. Levando consigo os panfletos impressos na noite anterior, entregou-os aos representantes do partido, promotor da passeata. Poderia muito bem afastar-se da manifestação, por todos os motivos. Mas se contaminou com o entusiasmo dos manifestantes. Há tanto tempo tinha se anulado. A antiga chama reascendeu, falando mais alto que a prudência. Lívia passou a a distribuir os folhetos que imprimira, juntando-se ao côro de vozes que ritimava a passeata com expressões de ordem e conclamação à justiça. À medida que acompanhava a passeata todo o seu íntimo vibrava. Como pudera ter se contido por tanto tempo? A emoção de participar de uma reivindicação em prol de melhor qualidade de vida para todos, de justiça e liberdade. Seu sangue corria celeremente. Sentia-se viva e resgatada de um sono pesado e entorpecido. A passeata dobrou a rua e avançou em direção à prefeitura. Subitamente diminuiu o ritmo. Postada duzentos metros adiante, uma barreira de capacetes brancos, encimando escudos e cassetetes se perfilava ameaçadoramente. Um oficial da cavalaria comandava a tropa. Mão direita no quadril, brandia arrogantemente um chicote de montaria. Pistola no coldre, esporas e botas. Mais atrás um carro de combate equipado com poderosa mangueira, geralmente usada para dispersar a multidão com potentes jatos de água. A passeata retomou seu caminho, aproximando-se perigosamente da tropa. Surpreendentemente a mangueira não foi usada. Ao invés disso, ao comando do cavaleiro,os soldados avançaram rapidamente golpeando violentamente os integrantes da passeata. Os que vinham atrás nào estavam preparados para tanta violência e foram presa fácil para os legalistas. Como uma manobra estratégica cuidadosamente preparada, das ruas paralelas surgiu um outro contingente de soldados, que cortou a retirada dos manifestantes. Estes ficaram prensados por duas paredes vivas, que golpeavam insistentemente, derrubando todos os que não conseguiam se esquivar aos duros golpes. Instalado o caos, a correria se generalizou. Salve-se quem puder. Em meio à chuva de golpes, Lívia conseguiu fugir em desabalada carreira, furando a barreira de golpes. De repente, sem que sequer atinasse com o ocorrido, percebeu o cavalariano galopar em sua direção. Aturdida, mal sentiu o chicote de montaria golpeando-lhe profundamente a face. Foi ao chão. Uma dor surda varou-lhe a têmpora direita. Depois braços a proteram e apararam outros golpes do chicote incansável. Quase inconsciente, conseguiu fugir auxiliada por outros manifestantes. Depois desfalecera. Voltara a si, muito tempo depois. Na enfermaria do pronto-socorro. Bandagens na face e em torno da cabeça. Ao lado de outros feridos, alguns em estado grave. Envergonhava-se de não se sentir tão ferida. Havia outros que necessitavam de mais ajuda do que ela. Mas fosse pela medicação fosse pelo estresse, sentiu-se flutuar no espaço, e desfaleceu outra vez. Muitas horas depois acordou suavemente. O corpo doía difusamente, mas a cabeça estava melhor. Percebeu uma longa atadura na face esquerda, que teimava em latejar. Uma enfermeira estava a verificar seus dados vitais. Chamou o médico encarregado do setor para passar-lhe a informação. Ainda entorpecida pela medicação, projetando-se do seu passado, de sua juventude, uma voz perfeitamente familiar perguntava pelo seu estado. Demorou apenas alguns segundos, mas reconheceu aquele acento mineiro, que tantas vezes a chamou pelo nome. Que lhe segredava seus desencantos ao pé da orelha. Vertiginosamente uma sequência de imagens, de uma época feliz e de realizações passoais, projetou-se em suas retinas. Em seu cérebro entorpecido e magoado. Leo. As narinas alargadas pelo sorriso cínico. O cabelo crespo esticado pela vaselina. No uniforme impecávelmente passado, calçando reluzentes botas de montaria, olhos reluzentes de escárnio, perfilado na frente de Leo, estava Alberto. Em meio à névoa que lhe toldava os olhos, imaginou tratar-se de mais um de seus pesadelos. Outro espectro do passado que voltava para assombrá-lo, como ainda fazia Chico. Uma pesada bofetada, porém chamou-o à realidade. Um pesadelo real, na odiada figura do militar. O atordoamento e o estado lastimável causado pelas privações das últimas horas subitamente arrefeceram provavelmente pelo choque do reencontro. Alberto sorria desmesuradamente, como que gozando toda a não disfarçada satisfação daquele momento. O verme que lhe escapara no distante lugarejo de Palestina, que como marionete era manipulado e utilizado como olheiro e delator, ali estava outra vez em suas mãos. E em que situação: roubara-lhe a oportunidade de se divertir espancando uma vaca comunista. Protegera-lhe o corpo caído no asfalto contra as chicotadas que ele, incansavelmente desferia. O cão ousara se opor à sua vontade. Iria se arrepender como nunca. Seria dali para diante seu saco de pancadas. Seu cão. Seu instrumento para testar novas formas de tortura. As rodas do destino ainda rodavam a seu favor. Havia seis meses que seus superiores o haviam transferido para Campo Grande. Pelos bons serviços prestados ao governo, na caça e captura de guerrilheiros no Araguaia, e obtenção de preciosas informações sob tortura. Promovido a capitão, chefiava agora o destacamento militar da cidade. Famosa pela afluência de fugitivos, que dela faziam sua rota de fuga através dos países do Cone Sul. E agora a satisfação de poder aplicar toda sua imaginação fazendo um inferno da vida daquele verme ruivo. De nada lhe adiantaria o diploma universitário, engenheiro frustrado, incapaz de construir nada. Incapaz de resistir à dor. Revolucionário de merda. Tinha muitos planos para ele. Brandindo-lhe outra bofetada, mandou prendê-lo em uma cela umida, fétida e sem janelas. Leo estava atônito. Jamais poderia esperar que seu passado o atingisse tão inesperadamente. A mulher naquela maca da enfermaria de emergência, espancada e maltrada pelo tempo, era a mesma que o acompanhara nos anos de sua juventude. Aliás aqele grupo de amigos sempre esteve fortemente reunido. Juntos na alegria, irmanados na ideologia de construir um país melhor. Glória, Lívia e Leo sempre estiveram muito próximos. A ponto de causarem até uma certa ciumeira entre o grupo. Sérgio, debochadamente os chamava, à semelhança do quadro famoso, e pela excessiva sensibilidade de Leo, de As Três Graças. Lívia estava marcada pelo sofrimento e pelas decepções dos últimos anos. As ataduras cobriam parcialmete a face e os cabelos. Que em nada lembravam o castanho escuro de outros tempos. Mesmo curto e artificialmente alourado, emoldurava os mesmos olhos cor-de-azeitona, que intensificavam a cor quando ela se zangava. O nariz afilado encimava lábios finos, mas sensuais. Uma pequena pinta escura acima do lábio superior à esquerda. Era mesmo Lívia que ressurgia, invadindo involuntariamente a privacidade que construira desde que se formara. Como um torvelinho todos os anos esquecidos foram reavivados. A alegria e também a dor e a decepção. Assustado inicialmente, deixou-se aos poucos invadir por uma sensação de comiseração para com ela e também para consigo mesmo. Como o tempo os tinha transformado! Também interiormente. Sentia-se curioso, mas não incomodado. Também havia muito que os maus pensamentos e o desejo de vingança haviam desaparecido. Até desejava confirmar seus sentimentos, procurando saber o que o tempo tinha reservado para seus antigos amigos. Tiago e Rodolfo, bons companheiros, de grande caráter. Nunca se aproveitaram de sua insegurança, nem dela zombaram. Fato comum na juventude. Quando as feridas alheias são expostas irresponsavelmente em momentos de inconsequência coletiva.Até sem maldade. Sempre mantivera a melhor lembrança de ambos. Que quando necessário o protegiam das encrencas em que se metia. Pelo seu espírito crítico e humor ácido. Nunca quisera ter-se afastado deles. Mas houve uma época em que mal conseguia suportar a si mesmo. Uma época de depressão, quando no fundo do poço, arrasado, chegara até mesmo a pensar em por fim à vida. Não o fizera talvez por falta de coragem. Preferira fugir, tentar recomeçar a vida a seu modo, em uma cidade menor, onde ninguém cobraria sua história de vida. Ou ainda sua solidão. Não fora bem assim. A solidão voluntária acabava sendo sempre questionada. Sempre testada. Mas isto ainda conseguia superar. Tinha seu trabalho. Ao qual se dedicou de corpo e alma. Lívia mantinha-se adormecida sob a ação dos analgésicos. Mais tarde a procuraria. Tentaria reaver parte do tempo perdido. Parte da história da qual um dia não quisera participar. Algo poderia e até deveria ser resgatado. Carinhosamente afagou os cabelos da mulher na maca, e afastou-se para continuar seu trabalho. Havia outros que necessitavam dele. Sentia-se estranhamente mais leve. Como se na confusão reinante no hospital, subitamente abrira-se uma clareira de luz. O reencontro de si mesmo. Não fugiria mais agora. Em sua cela, Sérgio se apercebia da ironia de seu destino. Toda a violência e crueldade gratuita de que fugira, tudo de execrável que tinha procurado deixar para trás, repentinamente de novo o atropelava. Exatamente quando estava tentando reconstruir sua história. Não era tanto o sofrimento físico, o espancamento, a sede. Mas a tortura mental que se iniciava. Tudo poderia ser esperado a partir da mente perversa e corrompida de Alberto. Um espírito das`trevas, contudo vivo, concreto, pronto a praticar toda a sorte de sordidez. E ainda com o poder que lhe conferia sua patente no exército. Precisamente em um momento quando todo o país estava subjugado pela ditadura militar. Face a essas negras`perspectivas, deixou-se levar pelo amortecimento que tomava conta de seu corpo maltratado e desfaleceu. Despertou de um sono intranquilo, pouco restaurador, onde imagens confusas se misturavam. Lívia chapada pela bebida, arrastada por ele, invadindo a biblioteca da mansão no Jardim Botânico, onde Glória e Leo se entrelaçavam. A primeira visão do rio Araguaia, aparentemente calmo e de águas profundas. O contacto com os moradores locais. O fantasma de Chico – erecto, sangrando, os braços cruzados a observá-lo As mãos decepadas dos guerrilheiros mortos, para que suas impressões digitais não fossem identificadas. A seu lado uma gamela com pão amolecido, aveia e água. Seria a primeira das muitas refeições iguais que teria. Sabendo que deveria reservar forças para o que lhe reservariam os próximos dias, comeu. Sem se aperceber. O frio e duro piso de cimento aumentava-lhe a dor. Perguntava a si mesmo quando seria merecedor de um sono tranquilo, e dias simples, apenas tranquilos. Se é que um dia ainda os pudesse ter. O reencontro com Glória tinha sido uma extraordinária demonstração de que o destino rege a vida dos mortais. Rodolfo após a emoção dos primeiros momentos, procurou saber o que todos aqueles anos tinham trazido para Glória. Ao mesmo tempo fazendo uma comparação com a sua própria vida. Soube das dificuldades iniciais para sua especialização em psiquiatria, seu encontro com o futuro marido, seu desempenho profisisional. Também soube de Amélie e do insucesso do casamento de Glória. Uma vida densa, com experiências difíceis, quase inimagináveis para a jovem irreverente, sedutora e alegre que tinha sido anos atrás. Imagem que dela sempre trazia. Também havia uma outra imagem perturbadora e definitiva. Glória submetida às fogosas investidas de Sérgio, o corpo alucinadamente explodindo,nos estertores de um sexo inconsequente. Esta outra, durante muito tempo causou-lhe,além da perda das ilusões, a certeza de buscar novos caminhos. Por outro lado, Gória, após o choque dos primeiros momentos, o abraço espontâneo e o peito explodindo na emoção do reencontro com a testemunha viva da fase mais feliz de sua vida, quedou-se anestesiada. Sem outra reação que não interrogá-lo insistentemente sobre tudo e todos. Caindo em si, após tudo o que experimentara desde que chegara a Paris, verificava que tinha deixado atrás de si muito mais do que imaginara. E que se importava muito com isso. É claro que acabara concretizando a maior parte de seus sonhos, como profissional. Como mulher, havia tantas perdas. Além disso, o que deixara de viver com aqueles, que durante anos tinham composto o cenário de sua juventude.

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