quinta-feira, 12 de julho de 2012

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 9) O FIO DA MEADA

Os dias que se seguiram foram de intensa preocupação. Os amigos não se procuraram. Conversavam rápida e discretamente nos corredores do hospital. Esperavam pelos próximos movimentos de um jogo, do qual não conheciam as regras. Também não previam o final. A entrevista de Leo na delegacia de polícia tinha tido mais ares de interrogatório do que simplesmente um depoimento para esclarecimento dos fatos ocorridos durante a passeata. A aparente cordialidade de Alberto não escondia seu espírito inquisidor, nem sua aguçada crueldade. Seus olhos demonstravam com clareza seu caráter. Também tudo que seria capaz de fazer para conseguir seus intentos. Na realidade Alberto transpirava o mal. Era impossível permanecer descontraído em sua presença. Sua própria elegância afetada, envergando sempre a farda estalando de engomada. As botas de montaria, detalhe essencial em sua indumentária , mesmo que raramente cavalgasse, permanentemente engraxadas, como a destacar a autoridade que lhe era conferida. Autoridade que lhe permitia cometer impunemente qualquer desmando. Botas que já haviam fraturado dezenas de costelas, fraturado algumas mandíbulas, sempre instrumentos de dor e tortura. Era como se a violência que delas emanava alimentasse sua satisfação interior e realização pessoal. Nada mais lhe agradava tanto. Mesmo o prazer do sexo, somente se completava com sádicas estratégias. Suas mulheres eram escolhidas por aceitarem manter relações sexuais, onde o espancamento era parte obrigatória. Exatamente por isso, nunca conseguira constituir uma família. Também não sentia falta desses laços. Nem mesmo manter qualquer relacionamento estável. Mantinha-se só. Como só atravessara toda a sua infância e adolescência. Nascera em Carlos Barbosa, em plena Serra Gaúcha, filho do intransigente Remy Cremona Este chegara ao Brasil, como imigrante alguns meses após a queda de Mussolini. Dizia-se na cidade, que viera fugido da Itália, escapando do destino reservado aos líderes camisas-pretas do fascismo. Olhos miúdos de cor acastanhada, cabelos escuros, lisos e já ralos, emoldurando um rosto magro e sulcado. Chegara ao Brasil viúvo. A esposa morrera na travessia e não conhecera o porto de Santos. Ninguém soube como aquele carcamano silencioso chegou ao Sul do país. Também como sem dificuldades conseguiu emprego na principal empresa da cidade, a Tramontina. Um ano depois estava casado com Ana. Discreta e quase bonita, treze anos mais jovem, de estrutura frágil, na primeira gravidez deu à luz a um natimorto. Remy, sempre taciturno, conseguiu progredir profissionalmente, embora não gozasse da estima de seus compatriotas. Inúmeros na região. Que começavam a construir uma colônia volumosa, procurando preservar a cultura rural e vinícola, oriunda dos vinhedos da Itália. Dois anos após Ana morria durante o parto. Dela, porém, ficara como lembrança o recém-nascido Alberto. Que para o pai nada mais era que um transtorno. Logo cedo o menino se reconheceu órfão de pai vivo. Vivo e sob suspeita de um passado excuso. À medida que o tempo passava, mais pai e filho se tornavam estranhos no ninho, que Remy escolhera para viver. E tentar enterrar o seu passado. Um relacionamento tormentoso fez com que Alberto fosse criado sem conhecer qualquer forma de afeto. Muito pelo contrário. Sua educação formal baseou-se no reconhecimento do certo e do errado, sempre às custas do silêncio absoluto ou de uma bofetada. Aprendeu a apanhar em silêncio. Aprendeu a odiar também silenciosamente. Na idade certa, alistou-se no exército, servindo no destacamento de cavalaria próximo a Dom Pedrito. Fez do serviço militar sua profissão e sua família.Sua única perspectiva de vida. Alberto acordou no meio da noite. A cabeça latejando. Intensamente. Como já vinha ocorrendo há alguns meses. Crises de dor, iniciadas repentinamente, e durando às vezes horas ou dias. Uma pressão contínua nos olhos, como se estivessem sendo arrancados. Sabia que alguma coisa não estava correndo bem. E pela primeira vez na vida teria que pedir auxíllio. Sempre detestara médicos. Por tudo que eles representavam. Por toda a esperança que transmitiam aos necessitados. Ganhavam a vida vendendo ilusões. De uma vida melhor. Sem sofrimento. Ou de uma morte mais digna. Como se houvesse dignidade na vida ou na morte. Em toda sua vida aprendera que para viver tinha que ser cada vez mais duro. Implacável. Para com os outros e também para si mesmo. A vida era para o mais forte. Os fracos nada mereciam. Serviam apenas para o tacão de suas botas. Como aquele verme miserável do engenheiro. Servia-se dele, usufruindo de cada gemido arrancado, de cada convulsão provocada pela dor da tortura. Uma vez, em pleno Araguaia, certa noite ele lhe escapara sorrateiramente. Como que arrependido por ter-lhe servido como delator. Dedurava por covardia seus companheiros de guerrilha. Por medo da dor e da tortura. Até que um dia desaparecera na noite, sem deixar vestígios. Mas a vida sempre é uma caixa de surpresas. Muito depois, já quando servia em Campo Grande, ao conter uma passeata na Avenida Afonso Pena, Sérgio surgira-lhe do nada, repentinamente, procurando defender a vaca comunista que distribuía panfletos e entoava gritos de ordem. Ainda sentia o prazer imenso de ter marcado a chicote aquela face de fuinha. E no auge de sua paixão, vendo o sangue escorrer da face assustada, eis que surge para contê-lo Sérgio, o rastejante objeto de sua raiva incontida. O filhinho de papai, que desiludido da vida, ousara brincar de se opor ao governo militar, tentando agir como um verdadeiro homem e participar da guerrilha do Araguaia. Mas era como na conhecida fábula do escorpião e do sapo. A natureza malévola do escorpião fazia com que sua cauda picasse o dorso do sapo que o transportava, atravessando um rio. Por instinto o escorpião matava o sapo, mesmo sabendo que assim ele próprio estaria se afogando. Da mesma forma que o instinto de Sérgio jamais o deixaria agir como um homem de verdade. Nas últimas semanas tinha-se dedicado com especial atenção àquele farrapo humano, ensinando-lhe que a dor tem muitas faces. Surpreendentemente não tinha conseguido extrair mais nada. Apenas em meio ao torpor que antecedia o desfalecimento total, Sérgio deixava soltas frases desconexas. Como vindos do inconsciente, nomes daqueles que pareciam ter sido de colegas da universidade. Repetidas vezes surgiam nomes como Glória, Léo e Lívia. Sem sobrenomes. Não conseguira nenhum registro deles nos arquivos do serviço secreto. E Sérgio como que bloqueava qualquer lembrança que pudesse desatar o fio dessa meada. Por mais martirizante que fossem as técnicas de tortura nele aplicadas. E estas eram tão engenhosas`quanto martirizantes. Agora essa dor. Inexplicável. Já quase não sentia prazer em torturar quem quer que fosse. Nem mesmo Sérgio. Também já há semanas não espancava nenhuma das piranhas, que terminavam as sessões de sexo brutalizadas. Castigadas por toda a sua devassidão e promiscuidade. Os seus próprios comandados já começavam a perceber quando a dor, de tão intensa, tirava-lhe o controle da situação. E intimamente se regozijavam com aqueles momentos de fraqueza. Alguma providência deveria ser tomada. Caso contrário, em breve seus superiores estariam retirando todo o apoio aos seus desmandos e crises de humor. Não poderia se ausentar sob pena de perder o seu comando. Procurou ser atendido pelos médicos locais. Não demorou para ser encaminhado a Leo. O melhor especialista da região. Justamente o almofadinha que, por motivos ainda não inteiramente esclarecidos, era citado por Sérgio, em suas mais dolorosas sessões de tortura. Era quase humilhante ter que submeter ao tratamento proposto pelo médico. Uma qualidade de homem desprezível. Sensível e competente. Muito diferente de seu jeito de ser. Truculento, machista e homem por inteiro. Assim Alberto, após muitas semanas procurou o médico. Sempre mantendo sua arrogância e desprezo pelo próximo. Léo procurava atender com atenção o militar. Que também aprendera a desprezar. Principalmente depois que Lívia o identificara como seu agressor. Depois havia ainda toda a fama grangeada por Alberto, como autoridade corrupta e implacável. Torturador, sem princípios. Agora ali, sentado em sua frente, na clínica, procurava disfarçar seu constrangimento em ser examinado pelo médico. Em responder às suas perguntas. Que lhe revelavam sua intimidade excusa.

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