quinta-feira, 12 de julho de 2012

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 13) DESAPARECIDOS

A caminhada pela mata, agora cerrada, tornava-se mais difícil, exigindo muito da disposição e das condições físicas dos fugitivos. O calor úmido tornava o esforço ainda maior, aumentando a necessidade do número de paradas para retomada das forças. Mas sempre com a cautela de se apressarem ao máximo. Havia sempre a possibilidade de Alberto estar em seus calcanhares. E ambos sabiam que, se capturados, não haveria perdão, nem futuro. Apenas a tortura, a dor e o fim de seus dias. Uma pequena cabana de caça surgiu em uma estreita clareira na mata, embora oculta pela copa das árvores. A porta aferrolhada por fora fazia supor um refúgio abandonado. Ao entrarem, logo perceberam vestígios de presença humana recente. Um só ambiente, dividido por cortinas, duas redes penduradas, uma mesa tosca com bancos laterais, prateleiras com utensílios de cozinha e suprimentos, um pequeno fogão e um baú compunham o mobiliário. No baú, agasalhos e duas mudas de roupa, jeans e camisetas. Fora, uma pequena bomba manual fornecia água para um tanque de pedra, revestido por cimento queimado. Os dois amigos trataram logo de preparar uma refeição rápida, e caíram no sono, agradecendo intimamente o conforto das redes. Acordaram algumas horas depois. Na escuridão da noite fechada, cotucados pelo duro e frio cano de uma escopeta calibre doze. Atordoados ainda pelo sono, e aterrorizados pela ameaça iminente, defrontaram-se com a figura de um mateiro. Sérgio, transtornado e lívido, parecia viver uma de suas visões. A figura alta e esguia que lhes apontava uma arma de caça, ressurgia ameaçadora de seu passado. Era a personificação do companheiro do Araguaia, Chico Alemão, que havia deixado para trás, gravemente ferido, para ser capturado, torturado e morto pelos soldados legalistas. Era como se finalmente estivesse sendo punido pelo seu ato de covardia. Sem refletir, caiu de joelhos, chamando pelo nome do antigo companheiro. Leo que já conhecia toda a essa história, através das longas e refletidas confidências de Sérgio nos últimos meses, ficou atônito com a cena do amigo ajoelhado aos pés do desconhecido, pedindo perdão. Contudo, não o suficiente para impedir que repentinamente, aproveitando-se de um momento de hesitação do desconhecido, com um movimento rápido e inesperado, o desarmasse, lançando-se contra ele e o derrubando no solo. Ante um Sérgio cada vez mais dominado por soluços convulsivos, as posições se inverteram, e Leo agora neutralizava o mateiro, usando sua própria arma. Imobilizado, punhos e tornozelos amarrados, o recém-chegado, também surpreso pela reação de Sérgio, e mais ainda pela rápida manobra de Leo, acabou não oferecendo maior resistência. Após cuidar do amigo, que aos poucos retomava a consciência, Leo tranquilizou o mateiro que nada lhe aconteceria. Apenas queriam passar a noite na cabana e retomar seu caminho ao amanhecer. Por sua vez o desconhecido esclareceu estar usando aquele abrigo como base de apoio para o seu trabalho. Era geólogo e avaliava as condições hidrominerais das inúmeras nascentes da região. Ao chegar e deparar-se com os dois arranchados na cabana, apenas por precaução, agira com hostilidade. Também surpreendeu-se com a reação de Sérgio, e principalmente ao ouvir o nome, pronunciado entre soluços, do guerrilheiro morto. Por extrema coincidência, quase inexplicável, eram primos, nascidos em Itajubá, tendo passado toda a infância e adolescência juntos. Físicamente muito parecidos, eram confundidos com frequência. Depois, tomaram caminhos diferentes. O primo entrou para o movimento clandestino, e após absoluta ausência de notícias, foi considerado desaparecido. Provavelmente morto, já que a perseguição aos guerrilheiros tinha sido implacável. Outros amigos tinham sido também considerados desaparecidos. E em alguns poucos casos os familiares haviam sido informados de sua morte, embora nunca tivessem notícia de seus corpos, ou onde tivessem sido sepultados. Após algumas horas de conversa, já havia se estabelecido uma certa camaradagem entre os três. Por não mais representar qualquer ameaça o desconhecido foi libertado de suas amarras. Sérgio acabou relatando sua participação anterior na guerrilha e as condições que cercaram a morte de Chico Alemão. Contou também como tinha sido torturado em campo Grande, e agora como estava tentando refazer sua vida. Omitiu, entretanto, os detalhes da fase mais negativa de sua vida, quando foi um joguete nas mãos de Alberto, delatando os companheiros da guerrilha. Também nada relatou sobre sua vida em Campo Grande e suas tentativas de se redimir, trabalhando como cuidador e motorista de ambulância. De como foi preso por defender Lívia da brutalidade de Alberto durante a passeata. Espantado com a coincidência de se deparar exatamente com uma testemunha do amargo destino de seu primo, em plena mata, e em condições tão inesperadas, o mateiro dispos-se a guiá-los em direção ao litoral. Aquela região afinal lhe era bastante familiar. Com o dia já amanhecendo, tomaram um café forte, e puseram-se a caminho. Os sons da mata nas primeiras horas da manhã eram suaves e alegres. Os raios de sol atravessavam a rama das árvores, criando esteiras de luz que aqueciam a alma e faziam renascer a esperança de dias melhores. E assim suavizavam a caminhada. Até uma colorida cobra bico-de-jaca, extremamente venenosa, quase não se moveu quando passaram ao largo dela, como se naquele momento, mágico, o início de um novo dia, se estabelecesse uma trégua entre todos os seres da floresta. Horas se passaram até que pudessem, sol a pino, ao longe ver o mar. Uma promessa quente de liberdade. Pararam ali para descansar e comer. Por sorte na cabana havia provisões que permitiram aos três saciar a fome e a sede. Borboletas de cores vivas e variadas absorviam a atenção de Sérgio. Talvez porque após tão longo período de privações e tortura, tivesse até se esquecido da existência de tão frágeis e belas criaturas. Na realidade, a essência da vida era também igualmente bela. O homem é que a transformava segundo suas intenções. E estas também transformavam o homem. Tornando a criatura mais perfeita da natureza, às vezes, na mais cruel e hedionda. Leo procurava se entender com o novo companheiro, buscando a melhor forma de chegar a Parati. Seria difícil para os perseguidores imaginarem uma rota de fuga tão engenhosa, de acesso quase impossível, através da mata, descendo a serra para o litoral. E o melhor é que contavam com muitas horas de vantagem em relação a Alberto. Este, após invadir violentamente a pousada de Analucia, a soldadesca revirando tudo, constatou, irado, que mais uma vez os fugitivos haviam lhe escapado. Furioso, passou a interrogar as duas mulheres. Usando como sempre seus métodos violentos. Inicialmente ambas recusaram-se a colaborar. Até que a dor causada pelos golpes do chicote de montaria de Alberto quebraram sua resistência. Analucia, mais para preservar Dora, confessou ter recebido o irmão e um amigo, que ali haviam chegado para algumas semanas de férias. Praticamente não haviam saído da pousada, limitando-se a longos períodos de leitura e conversa ao sol, junto à pequena piscina. Não recebiam visitas, nem telefonemas. Restringiam-se a rememorar momentos de família, há muito esquecidos por Analucia. Nenhuma palavra sobre política. Ou sobre a fuga de Campo Grande. Era como se Leo houvesse planejado um reencontro tranquilo com a irmã. Aproveitando para tratar de um amigo doente. Com problemas de amnésia transitória. Para o que necessitava da tranquilidade do ambiente bucólico da pousada. Já prevendo a inutilidade do interrogatório, e mais uma vez surpreendido pela sagacidade demonstrada por Leo, apartando a irmã de qualquer conhecimento que pudesse fornecer informações sobre o paradeiro dos fugitivos, Alberto já se dispunha a prendê-las, quando seu ajudante de ordens procurou-o ansioso. Havia descoberto algo de importante que talvez esclarecesse sobre o paradeiro de Leo. Era um envelope encontrado no fundo do guarda-roupas no quarto utilizado pelos fugitivos. Esquecido entre um par de sapatos sociais ali deixados. Nele havia um roteiro de viagem programada por uma agência de turismo de Goiânia. Um vôo Rio de Janeiro – Lisboa para dois passageiros. Também um recibo de compra de dois bilhetes. De imediato, Alberto, finalmente acreditando que a sorte lhe sorria, correu para o jipe, e através do rádio entrou em contacto com a central de informações da polícia do exército, solicitando uma investigação imediata na agência de viagens em Goiânia. Juntando seus homens, deixou Analucia e Dora prostradas,e abalou-se para o Rio de Janeiro. Talvez ainda houvesse como interceptar os fugitivos. Ou pelo menos ter notícias reais de seu paradeiro. Nem que fosse a última coisa a fazer na vida iria atrás deles. Cedo ou tarde teria sua vingança. Entretanto havia antes por fazer seu tratamento ocular. A dor de cabeça agora era quase contínua. Não havia como esperar mais. Horas depois, recebeu um comunicado da central de investigações. Em caráter de urgência a agência de viagens foi investigada. Efetivamente dois bilhetes aéreos haviam sido comprados naquele roteiro, em nome de dois desconhecidos. Provavelmente utilizando passaportes falsificados. O pagamento havia sido feito em dinheiro vivo, o que até chamou a atenção do funcionário da agência. Quem comprara os bilhetes havia sido uma mulher ainda jovem, cabelos curtos, de poucas palavras. As condições inusitadas da compra, apesar dos nomes falsos, deu quase certeza a Alberto de que se tratava de Leo e Sérgio. Até a descrição da mulher de cabelos curtos coincidia com a enfermeira que havia acompanhado Leo no resgate de Sérgio da Casa de Detenção de Campo Grande. Mais tarde haveria também de encontrá-la e ajustar as suas contas com ela. O aeroporto do Galeão estava quase deserto quando Alberto e seus soldados irromperam pelo saguão principal. Sem demora, dirigiram-se para a agência da TAP ( Transportes Aéreos Portugal ), onde um funcionário mais graduado os recebeu. Autoritariamente Alberto requisitou as listas de passageiros embarcados nos últimos vôos para Lisboa. Após uma longa espera, retornou com as listas. Alberto ansiosamente percorreu todos os nomes. Repentinamente parou, atirando as listas ao chão. No vôo do dia anterior constava o nome dos dois passageiros embarcados.

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