quinta-feira, 12 de julho de 2012

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 17) SÃO PAULO 1996

Ele atravessou o portão de embarque com segurança e determinação. Até com certo alívio. Nem mesmo a bengala, que usava para compensar a visão limitada, o atrapalhava. O terno bem assentado e os sapatos impecavelmente engraxados demonstravam ainda uma situação econômica confortável. Também vaidade e até um ar de arrrogância. O aeroporto de Congonhas, acanhado e insuficiente para a demanda dos vôos domésticos, naquela manhã de outubro, mostrava todo o desconforto causado pelas longas filas e salas de embarque com lotação acima da prevista. Chegar ao aeroporto já se constituíra em um sacrifício, decorrente do pesado tráfico da cidade de São Paulo. Nunca a expressão selva de pedra fora tão bem aplicada. As ruas simplesmente entupidas. As rotas de acesso com um fluxo lento demais. A combustão dos motores poluía massacrantemente a manhã luminosa. Aquele vôo tinha sido uma solução inesperada para a urgência que o acometia. Voltar a Campo Grande não o agradava. Um cortejo de memórias teimava em resgatar o passado, que volta e meia retornava, cobrando os juros de uma dívida sem resgate. Espectros o assediavam cada vez mais frequentemente. Uma sucessão de rostos contorcidos perturbava-o sem piedade, trazendo-lhe noites de insônia. Ele,que nunca soubera o significado dessas palavras - piedade e insônia – agora passava noites sem dormir. Pesadelos e fantasmas que ele mesmo tinha criado. Todos os detalhes de sua vida pregressa como caçador de homens e torturador passavam e repassavam em sua mente. Com destaque para todos os requintes de crueldade e perversões, nos quais sempre fora mestre. Agora, quando a noite caía, começava seu maior pesadelo. Continuar vivo. Uma pontada aguda na cabeça trouxe-o à realidade. Continuar vivo significava conviver com a dor e a limitação visual, que há anos o acometia. Tivera sua carreira militar e política interrompida pela enfermidade. Que o colocava sempre em uma condição de vulnerabilidade e insegurança. A viagem aos Estados Unidos e o tratamento lá desenvolvido tinham sido quase um fracasso. Embora tivesse conseguido conter o curso da enfermidade, e assim evitado a cegueira total, ficara ainda com as dores e uma acentuada diminuição na acuidade visual. Entretanto, acima de tudo, uma absoluta sensação de ter sido ludibriado. O que lhe aumentava mais ainda o rancor e o ódio que lhe consumiam as entranhas. Não conseguia esquecer que sua condição atual se deveu ao tempo perdido na perseguição a Sérgio e Leo. Os dois ainda continuavam vivos, e o assombravam. Tomando conta de todos os seus dias. Sempre presentes em todas as situações, como que para recordá-lo permanentemente de sua humilhante derrota. Ele, um dos mais persistentes caçadores dos guerilheiros do Araguaia, ter sido passado para trás por um renegado que mal se aguentava sobre as pernas e um médico almofadinha do interior. Depois de quase tê-los apanhado, quando se refugiaram na pousada da irmã de Leo, perdera a pista dos fugitivos no aeroporto do Galeão, onde supostamente haviam embarcado para Lisboa. Supostamente, porque nunca as autoridades portuguesas confirmaram a presença de qualquer brasileiro que se assemelhasse à descrição física de leo e Sérgio, enviadas pela polícia do exército. Mesmo após sua volta dos Estados Unidos, e após ter sido reformado, abandonando sua privilegiada posição no exército, em função de suas condições físicas, Alberto jamais deixara de procurar os dois fugitivos. Obsessivamente. Tinha pessoalmente vasculhado os arquivos da polícia portuguesa, verificando a entrada de brasileiros no país. Sem qualquer resultado. No Brasil, não havia se deparado em todos os últimos anos com qualquer pista. Era como se os dois tivessem sido tragados pela terra. Depois promulgaram a Lei da Anistia. E com ela Alberto perdeu toda e qualquer possibilidade de, oficialmente, lavar sua honra. Até que, no último fim de semana os jornais trouxeram uma nota de rodapé na coluna policial. Em Campo Grande o encontro do corpo de provavelmente um dos sobreviventes da guerrilha do Araguaia, despertaram sua atenção. Sérgio fora encontrado morto, dentro de seu Vectra prata. Sem causa aparente. Sem vestígios de violência. Sobre os joelhos uma pasta de documentos semi-aberta. O conteúdo intrigante, reminiscências de uma época infeliz, de repressão e brutalidade. Fotos antigas, algumas da época da guerrilha do Araguaia, uma carta endereçada ao seu herdeiro legal, em caso de sua morte, documentos e cem mil dólares americanos. Em letras de câmbio beneficiando um tal Leopoldo Augusto dos Anjos. Um passaporte presumivelmente falso de procedência chilena. Também uma carta endereçada a Leo. Estava voltando. Talvez agora pudesse definitivamente acertar suas contas com Leo e Sérgio. Estava disposto a ir às ùltimas consequências. Instintivamente pensou em sua pistola automática, despachada em sua bagagem. O doce sabor da vingança. Afinal a vitória, após todos os anos de frustração e procura. A vingança é um prato que se come frio, diz o ditado. E certamente ele iria degustá-la com infinito prazer. E havia também a possibilidade das fotos comprometedoras, que poderiam ainda trazer-lhe graves problemas. As mesmas fotos que o incriminavam quando recebeu a maleta de dólares em Campo Grande, na noite do resgate de Sérgio. O Fokker 100 da TAM arrancou na pista sem atraso, às 08h26, e decolou como se carregasse o mundo na fuselagem. Na realidade eram noventa e seis passageiros a bordo. A cidade de São Paulo abaixo, distanciando-se aos poucos, mostrava sua floresta de edifícios, cinzentos e irregulares. Sem definição de horizontes, apenas o casario interminável. Serpentes de veículos cruzavam as ruas tornando o deslocamento urbano insuportável nas horas de maior fluxo. Fechando os olhos, deixou-se embalar pelas lembranças,tentando relaxar. Não conseguiu. Nem iria mais. Sem qualquer aviso prévio, em segundos o avião perdeu altura, inclinou-se para a direita e resvalou na cobertura de um prédio de três andares. Quase não ouviu o clamor dos passageiros. Não houve tempo. Batendo no telhado de outro prédio, já em chamas o avião se espatifou sobre oito casas na rua Luis Orsini de Castro, explodindo e incendiando catorze carros estacionados. O trabalho de resgate dos corpos durou sete horas, em meio a um cheiro insuportável de querosene, e uma poeira preta que dificultava a respiração. O fogo controlado deixava destroços, como se uma bomba tivesse caído sobre o quarteirão. Os vizinhos consternados se uniam voluntariamente aos bombeiros, policiais e paramédicos, na inútil procura por sobreviventes. Mais tarde a contagem de vítimas fatais chegaria a 99. A maior parte dos corpos, desfigurados e carbonizados, em sacos plásticos,foram empilhados no asfalto.Compondo uma cena de horror.

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