quinta-feira, 12 de julho de 2012

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 5) 1973 - SÉRGIO

Noite de quinta-feira. Como representante da comunidade, Sérgio novamente tinha sido convocado para viajar seis quilômetros e assistir à reunião das autoridades militares da região. Era obrigatório. Caso não fosse,teria que se explicar com a milícia anti-guerrilha. Quatro o cinco soldados, quase sempre muito jovens, chegariam para escoltá-lo. Nessa reunião invariavelmente seriam mostrado as fotografias dos guerrilheiros capturados. E também as de suspeitos e fugitivos. Tinham uma lista de mais de sessenta guerrilheiros. Essas fotos eram mostradas aos habitantes locais, para que fossem identificados e delatados. Havia também oficiais de informação, com a responsabilidade de interrogar os prisioneiros capturados. Estes eram lançados em buracos cavados na terra e coberto por uma rede de arame farpado. Era na cadeia de Xambioá, onde se concentravam as tropas policiais, as violências e as prisões. Estava lotada de suspeitos.Na base aérea da cidade, no aeroporto, os especialistas em interrogatório ordenaram que se cavassem buracos bem fundos, de aproximadamente dois metros. Os buracos eram cobertos de arame farpado e os presos ficavam ali, amarrados, além de algemados, alguns nas mãos e nos pés. Um cano fazia pingar metodicamente sobre suas cabeças água gelada. Essas práticas eram repetidas em localidades menores, onde estavam acantonadas as forças do governo. Naquela noite a reunião foi especial. Havia um destacamento de milicianos recém-chegados, trazendo como troféus cabeças e mãos decapitadas, expostas a todos os presentes. Contaram que naquela tarde haviam chegado numa lagoa, local onde a inteligência militar havia apontado como foco de guerrilheiros. Chegaram quase uma hora depois. Eram quase dez. Cansados e distraídos. Ao se debruçarem para tomar água, foram alvejados por uma barragem de fogo, pipocando entre as moitas. Os militares acoitados quase partirem em dois os corpos dos guerrilheiros. Ninguém escapou. Havia um estertorando. O sargento do pelotão aproximou-se, perguntando sobre a base de operações daquele grupo. Recebeu como resposta uma cusparada. Sacando de seu facão de mato, decapitou ainda vivo o guerrilheiro caído. As cabeças cortadas eram na época as provas que o exército era vitorioso sobre os guerrilheiros. Esta era uma macabra tradição das forças legalistas, anteriormente praticada no Brasil no massacre aos movimentos messiânicos, como a Guerra de Canudos e o combate ao cangaço. Na mesma reunião apresentaram um relatório detalhado sobre outras atividades do destacamento. Capturaram mateiros locais, todos em péssimas condições físicas. Foram colocados em helicópteros que após levantar vôo os lançavam ainda com vida no meio da selva. Sergio já não se importava mais com os relatos de atrocidades. Eram por demais frequentes. No início, ao chegar no Araguaia, recrutado pelo movimento revolucionário, fizera parte da comunidade, dedicando-se a ela integralmente. Em fins de 1973, após quase ter sido morto em uma emboscada, refugiou-se em Palestina, lugarejo onde conheceu Alberto, um jovem tenente da cavalaria, chefe do destacamento local. Paranóico e mau-caráter. Recentemente havia torturado um padre e uma freira, com ritos de insana crueldade, por terem auxiliado a população local. Nesta,o índice de mortalidade infantil era muito alto, e quase 20% das mães morriam no primeiro parto. Os religiosos foram julgados por se assemelharem fisicamente a líderes da guerrilha. Sérgio por sua cultura universitária, logo foi vítima da suspeita e intolerância do militar. Preso, foi submetido a repetidas sessões de tortura. Freqüentemente era pendurado de cabeça para baixo, - para pensar melhor nas respostas a dar, e insistentemente chutado por Alberto e seus asseclas. Após dias de muita dor, foi atirado em um quartinho de dois por três metros com outras quarenta pessoas. Sem água ou alimento. Depois disso, abandonou tudo. Passou a colaborar com as forças anti-revolucionárias. Sepultando o seu passado. Vivendo apenas dia após dia. Das lembranças, procurou sepultar as mais antigas, justamente as que mais lhe cobrariam a conduta atual, covarde e vergonhosa. Entretanto, nunca conseguira afastar Glória de seus pensamentos. Rotineiramente ela aparecia, como nos tempos da faculdade. Sorrindo despreocupadamente, como se a vida fosse uma ciranda de festas descompromissadas. E, quantas vezes, brincando, ela lhe rechaçava os assédios, dizendo ser os advogados bons mesmo só na conversa. Isto lhe deixava alucinadamente descontrolado. Ao que ela apenas ria inconsequentemente. Ao mesmo tempo que se revelava intensamente dedicada ao seu curso e aos pacientes que atendia. Toda essa intensidade de vida que reconhecia em Glória, faltava-lhe agora, tornando-o amargurado e infeliz. As lembranças recentes torturavam-lhe a alma, testemunhas de um presente sem cor. Destas, repetidas vêzes vinha-lhe a figura do Chico Alemão. Mineiro, seu contemporâneo na universidade, formado em filosofia, e desde cedo participante de movimentos estudantis. Acreditando lutar por um país melhor, foi um dos fundadores da União da Juventude Patriótica. Com a intensificação do movimento, e já procurado pela Polícia Política, refugiou-se no Araguaia. Ambos se reencontraram na região de Gameleira. Inicialmente Chico se surpreendera com a presença de Sérgio ali. Este nunca fora suficientemente ligado na luta democrática para aderir à guerrilha. Mas Chico acabou acatando o silêncio do amigo. Sérgio por sua vez reconhecia no companheiro alto e esguio, face longa e prognata, barba por fazer e bigode farto, tudo aquilo que gostaria de ter sido: resolvido, determinado e dedicado a uma causa na qual acreditava acima de tudo. Passaram a compartilhar as mesmas atividades e a conviver dentro de um clima de companheirismo. Participaram de atividades comunitárias, nas quais Sérgio aprendera mais sobre as raízes do movimento revolucionário, e muito sobre a precária qualidade de vida do povo da região. Entardecer de 28 de novembro. Chico, Sérgio e mais seis companheiros, participavam de uma ação no campo. Embrenharam-se na mata havia já dois dias, fazendo o reconhecimento do movimento de tropas legalistas na região. Havia muito já se tinham acostumado ao calor e às atividades de sobrevivência na mata. Montaram acampamento. Chico e Sérgio se afastaram para procurar caça ou algum jaboti desprevenido pela grota. Andavam despreocupadamente. Seu destacamento já havia acampado no mesmo lugar há algumas semanas atrás. O ar estava quente, e as primeiras estrelas apareciam no céu ainda claro. Subitamente tiros cortaram o silêncio da mata. Chico caiu, a camisa manchada de sangue que já fluia aos borbotões. Sérgio sentiu uma picada lancinante no ombro, e mais por susto que por cautela, caiu, arrastando-se inconscientemente para o oco de uma gameleira próxima. Outros tiros se ouviram. Ao cabo de alguns minutos, que pareceram horas, suor gelado, misturando-se ao sangue quente da ferida no ombro, Sérgio aterrorizado viu sairem de um capão de mato próximo dois vultos armados. Pareciam índios, geralmente contratados como batedores dos federais. Percebendo que Chico ainda vivia, arrastaram- no pelas pernas, indiferentes aos seus gemidos de dor. Sérgio, apavorado, via o amigo ser conduzido, certamente para a tortura, sem ter ânimo para levantar um só dedo em sua defesa, aterrorizado com a perspectiva da morte ou da tortura. Dando as costas para o amigo, continuou a arrastar-se até que, exausto, desfaleceu perdendo a consciência. Acordou algumas horas depois para desfalecer em seguida. Dia alto foi resgatado pelos sobreviventes da emboscada, atordoado pela perda de sangue e pela exaustão física. Os companheiros deixaram-no em um hospital rústico da região, onde foi tratado toscamente, mas com suficiente eficiência para se recuperar algumas semanas depois. Nunca mais teve notícias de qualquer um dos companheiros. O ferimento à bala tornou-o uma figura marcada e sob suspeita. Nunca mais ouviu falar de Chico. Dizia-se que havia sido preso e mantido sob tortura durante dois dias. Depois tinha sido deixado morto, insepulto, na mata para que seu corpo fosse devorado por animais carnívoros e aves de rapina. Seus restos mortais nunca foram encontrados. Também nunca mais conseguiu esquecê-lo. Os pesadelos eram frequentes. Todos cobrando sua covardia. Estava vivo, mas não ousara fazer um movimento sequer para tentar salvar o amigo. Que sempre reconhecera ser alguëm muito melhor que ele. Mas mesmo assim deixara que o levassem para a tortura e a morte certa. Morte indigna. Revoltante e desnecessária. Mais uma vez fugiu. Como fugira antes do Rio de Janeiro, incapaz que fora de enfrentar as consequências da festa de final de ano. Incapaz de declarar a Glória todos os seus sentimentos. De lhe dizer que o álcool e as drogas simplesmente fizeram despertar nele, ainda que violentamente, todo o fogo interno que o consumia. Envergonhava-se também pela humilhação imposta a Leo. Este nunca mais dela se recuperara. Os amigos dele se afastaram. O que permitiu a Sérgio a impunidade. De um ato impensado, que até poderia ter sido esclarecido e contornado. Mas outra vez, faltou-lhe coragem e determinação. Depois de vagar a esmo, fugindo dos mateiros e batedores do exército, reapareceu semanas depois em Palestina. Onde o pesadelo continuou, agora regido pela crueldade radical e frieza do tenente Alberto. Que passou a manipulá-lo, explorando toda a insegurança e tibieza de Sérgio. Agora atormentado pelo remorso de sequer ter tentado salvar o amigo. Exatamente aquele que possuía todas as virtudes, que ele, Sérgio, sempre pretendera ter.

Um comentário:

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