quinta-feira, 12 de julho de 2012

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 16) CAMPO GRANDE 1996

Sérgio levantou-se bem disposto naquela manhã. Havia muito tempo que Chico Alemão não mais aparecia em seu sono atormentado. Nesta noite regressara. Mas em condições muito diferentes. Não mais ferido e agonizante. Mas como o vira pela primeira vez, sorridente e com um vigoroso aperto de mão. Fora uma visão rápida e reconfortante. Tomara o café lendo o jornal, procurando nas notícias da manhã algo que o auxiliasse na tarefa que se impusera a fazer naquele dia. Algo que já deveria ter feito há tempos. Mas que fora deixando sem se aperceber que os dias correm mais rapidamente do que imaginamos. Apanhou uma pasta de documentos e sentou-se no sofá da sala. Eram o testemunho mudo de um passado com encontros e desencontros. Dor, resgate e honra recuperada. Fotos antigas e mais recentes recordavam-lhe os poucos amigos e momentos inesquecíveis. As diferentes fases de sua vida ali estavam representadas. Os amigos da universidade, companheiros da guerrilha, Leo e ele fotografados várias vezes na pousada de Analucia, no Chile e depois na África, quando serviram no Corpo de Paz da Organização das Nações Unidas. Deixou-se ficar algum tempo rememorando aqueles dias tão conturbados. Não fosse o apoio e a companhia de Leo, certamente não teria sobrevivido a todas aquelas situações. Além do apoio financeiro, Leo havia dedicado boa parte de sua vida a ampará-lo e a conduzí-lo para dias melhores. Agora deveria compensar toda a dedicação do amigo. Ao menos o investimento econômico. Já que o moral não teria nunca como retribuir. Acometido por repentina emoção, lembrou-se daquele fim de tarde especial na cafeteria do Cerro Santa Lúcia quando Lívia finalmente se reuniu a ele e a Leo. Sorrisos, lágrimas de alívio e confidências regadas a um bom vinho chileno estenderam-se noite a dentro. Planos para um futuro melhor. Após algumas semanas Lívia voou para Paris. Ao encontro de Glória, que tinha encontrado pistas que levariam ao paradeiro de Tiago. Em breve todos estariam reunidos, iniciando uma fase mais feliz de suas vidas. Já os dois amigos nada tinham programado para o futuro, que não fosse a recuperação total de Sérgio. Leo aproveitava esses dias de tranquilidade para ler ou pintar. A arquitetura típica do centro histórico de Santiago era uma motivação imperdível para o pintor de casarios. Não havia a menor oportunidade de retornar ao Brasil nos próximos anos. Também havia Alberto, provavelmente para executar qualquer vingança bem elaborada. As perspectivas de permanecerem em Santiago não eram atraentes. O regime totalitário implantado pelo golpe militar que levara ao poder o general Augusto Pinochet, cedo ou tarde iria se interessar por exilados políticos, principalmente brasileiros. Decidiram que também deveriam partir. Apenas não sabiam para onde. Talvez Paris. Mas também sem muito empenho. Talvez não estivessem preparados ainda para reencontrar o grupo de amigos dos tempos da universidade. Muito havia acontecido com todos, e as cicatrizes estavam ainda recentes. Todos necessitavam de um período de recuperação. A situação econômica de Leo era ainda muito confortável, o que permitia uma refletida liberdade de opções. Terminaram por escolher a Suiça, onde em Genève,Leo tinha contactos confiáveis. Também haveria maiores facilidades em gerenciar os dividendos de seu patrimônio. Os primeiros dias no novo exílio foram de reconhecimento. Comportaram-se como turistas descompromissados. Alugaram um pequeno apartamento próximo ao lago. Todas as manhãs exercitavam-se fazendo longas caminhadas pelo Promenade de Lac, usufruindo da dinâmica e magnífica presença do Jet d’Eau, símbolo vivo da cidade. Um jato de água projetando-se vertiginosamente para os céus, para cair em seguida formando uma cortina transparente de gotículas sobre a superfície calma do lago. Mais tarde sentavam-se nos bancos do Jardin des Anglais, vendo preguiçosamente os transeuntes, na maioria turistas, fazendo suas caminhadas e fotografando a coluna de água que se projetava sobre as águas escuras e sempre frias do lago. Eram horas de tranquilidade extrema, nas quais Sérgio procurava esquecer suas culpas e a dor da tortura. Leo pacientemente acompanhava o amigo, respeitando aqueles momentos de reflexão. Procurava também aos poucos direcionar seus objetivos de vida. Após alguns meses, quando quase já não suportava a inércia daquele período de recuperação, apresentou a Sérgio um projeto que lhe ocorrera recentemente. Disposto a não desperdiçar toda a sua formação profissional, e ante as dificuldades em exercer a Medicina na Europa, tinha resolvido alistar-se no Corpo de Paz das Nações Unidas. Prestaria assistência médica onde fosse designado. Provavelmente em algum lugar da África. Como não tinha família poderia viver ao menos construindo um futuro melhor. Auxiliando a melhorar a condição de vida de desabrigados e necessitados. Inicialmente amedrontado com a possibilidade de perder a companhia do amigo, aos poucos Sérgio foi também sendo seduzido pela idéia, que repentinamente também daria um novo rumo, uma nova perspectiva para sua vida. A possibilidade de servir ao próximo. Resgatar o idealismo dos verdes anos. Retribuir à vida, tudo que oela lhe havia oferecido de bom através de seus amigos. Principalmente através da dedicação incondicional de Leo. Que o havia resgatado da tortura e da morte,oferecendo-lhe a possibilidade de um novo recomêço. Não demorou muito e após alguns meses desembarcavam na África. A partir de 1980, a comunidade internacional descobriu-se atônita com a devastação, miséria e epidemia de fome que assolava a Somália e regiões vizinhas. A anarquia e o início da guerra entre clãs, buscando o poder e martirizando a população geraram a intervenção das Nações Unidas. A Somália por sua estratégica situação geográfica, constitui-se em uma opção de acesso ao Mar Vermelho, passando pelo Golfo de Aden. Sua capital Mogadiscio localiza-se às margens do Oceano Índico. A abertura do Canal de Suez em 1869 desde há muito chamava a atenção das potências internacionais para os vizinhos do Sul. As influências internacionais não foram suficientes para impedir que a Somália em 1982 mergulhasse em um cenário de absoluta miséria e banditismo, promovendo o êxodo de dois milhões de habitantes famintos. A Cruz Vermelha destinava um terço de seus recursos na época para a Somália, em parceria com outras vinte agências humanitárias internacionais. As violações dos direitos humanos, rotina na Somália devastada, embargavam novas formas de ajuda humanitária. Ainda havia o caos político acompanhado de seca, fome e epidemias. O solo árido não favorecia qualquer forma de agricultura. Com o tempo inúmeras facções e milícias armadas passaram a disputar o poder, massacrando impunemente a população. Este foi o cenário encontrado por Leo e Sérgio, certamente o maior desafio de suas vidas. Lançaram-se a ele de corpo e alma, esquecendo-se de si mesmos e de tudo quanto haviam passado anteriormente. Embora em agosto de 1979 as autoridades brasileiras tivessem decretado a Lei da Anistia, favorecendo todos os exilados políticos, e eximindo de culpas todos os participantes dos violentos acontecimentos dos anos de repressão, de ambas as partes, os dois amigos continuaram seu novo projeto de vida. Passaram-se mais de dez anos antes que Leo e Sérgio verificassem a necessidade de voltar para casa. Mesmo porque após tanto tempo ausentes, o conceito de lar e família até já tivesse outro significado. Voltar para onde? Procurar quem? Ambos estavam juntos também há muito tempo. Fortes laços os uniam desde a devotada escolha de Leo, abandonando uma vida já estabelecida para resgatar Sérgio, cuidando dele até sua recuperação total. Depois, aos poucos, um tornou-se a família do outro. E jamais surgiu a perspectiva de um relacionamento estável com qualquer mulher. Marcas do passado. Sentado no sofá naquela manhã em Campo Grande, relembrando todos os acontecimentos dos últimos anos, a fuga para Santiago, os meses em Genève e os longos anos de trabalho árduo na Somália, Sérgio sentia-se quase feliz. Afinal sua vida não fora inteiramente desperdiçada. Graças a Leo, recuperara a sua auto-estima e conseguira construir uma vida digna de trabalho, altruista e edificante. Tinha reunido amigos e não se sentia mais sozinho. Guardava,porém, um infinito sentido de gratidão para com o amigo, que devotara tantos anos à reconstrução de sua vida. Deixara temporariamente Leo para trás, voltando para Campo Grande, pois secretamente acalentava a idéia de compensar parcialmente o amigo por todo o investimento em seu resgate e recuperação física. Apanhando o dinheiro amealhado em todos os anos que antecederam sua captura, secretamente investido sob um nome falso, convertera a soma em cheques de viagem beneficiando a Leo. Colocara-os em uma pasta de couro, junto com algumas fotografias antigas da época da universidade, da ditadura e da guerrilha do Araguaia. Necessitava ir ao banco e alugar um cofre,em nome de Leo,para guardar todas aquelas lembranças. Pretendia surpreender agradavelmente o amigo. De novo, subitamente,aquela agulhada no antebraço esquerdo. Era a terceira vez nos últimos dois dias. Levantou-se, apanhou a chave do carro e saiu. O Vectra prata não chegou a arrancar. Sérgio, mal ligara a ignição, quando uma dor aguda percorreu-lhe todo o antebraço. Gotas de suor frio percorreram-lhe o rosto, e uma dor em aperto tirou-lhe o fôlego. A cabeça caiu pesadamente sobre o volante. A buzina passou a soar, como um lamento ruidoso e insuportável.

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