quinta-feira, 12 de julho de 2012

POR TRÁS DE GLÓRIA ( PARTE 1 )

“ Por trás de Glória há todo um cenário de encontros e desencontros, encantos e desencantos, ascensão e queda, que se não justificam, pelo menos conduzem o comportamento humano...” PARTE I 2002 - VOLTANDO PARA CASA Naquele sábado ensolarado, à tarde, ensolarado o vai-e-vem dos turistas e frequentadores dos mercados ao ar livre da Rue Mouffetard coloria alegremente o cenário de estreitos prédios de quatro andares, com telhados do tipo mansardas. A fachada do número 125, toda restaurada no estilo Luis XVIII, recebeu familiarmente a entrada de Glória. A escada em espiral conduziu-a ao pequeno apartamento, que durante os últimos quatro anos abrigara seus dias de busca de si mesma. Na plenitude de seus quase cincoenta anos, Glória, ainda era uma bela mulher. Ao contrário dos homens, e como a maioria das mulheres, podia viver sozinha após uma relação duradoura de mais de dez anos. Personalidade forte e dominadora, não dera muitas oportunidades ao marido de conviver com sua maturidade equilibrada e conscientemente provocativa. Depois vieram os problemas com a filha adotada, Amelie. Estes puseram um ponto final no casamento já fragilizado. Abrindo as cortinas, como num ritual, deixou-se iluminar pelo sol que desmaiava no horizonte recortado por edifícios baixos. Partiu o queijo Rigotte, comprado no mercadinho da Place Maubert, misturando seu sabor forte com o de uma taça de Clos de L´Écho, um bom vinho tinto da região de Chinon. Pensava que uma das boas lembranças do ex-marido era o seu delicado paladar para vinhos, e a paciente introdução dela na arte de degustá-los. Assim a solidão era mais atenuada. Solidão que ela mesma buscara ao constatar a frustração de um relacionamento que perdera todo o encanto. Fora-se a paixão. Ficara apenas uma amizade vazia. E durante o jantar, embora frente a frente, longos e insuportáveis silêncios, quebrados apenas em geral por repetidos e inconsistentes comentários. Um casamento sem filhos. Embora Glória houvesse se especializado em psiquiatria infantil e do adolescente no Hospital Pitié-Salpêtrière. Depois adotaram Amélie. Fora um longo caminho percorrido desde sua cidade natal, a pequena Água Doce do Norte, no Espírito Santo, passando pelo Rio de Janeiro onde se formou na Faculdade de Medicina da Universidade Federal, a UFRJ, na Praia Vermelha. Após alguns meses conseguiu realizar o velho sonho de continuar sua formação profissional em Paris. Foram anos magníficos e nunca solitários. Inicialmente no Hospital Cochin, onde conhecera o marido. E posteriormente no Pitié-Salpêtriere, onde iniciaram os primeiros desencantos, passos para sua separação. Conhecera Armand na Salle de Garde do Hospital Cochin, o pavilhão e refeitório dos residentes e plantonistas. Irreverente até em sua suntuosa decoração, onde afrescos do século passado decoravam as paredes com cenas mitológicas de temas libidinosos e caricaturadamente eróticos. Nesse ambiente quase tudo era permitido. Como para compensar o rigor e a estafante rotina dos plantões. A assistência aos pacientes praticamente sugava a energia de todos os médicos, principalmente a dos residentes. Naquele início de tarde o salão fervilhava, como sempre, e logo após o almoço, como brincadeira marota, a atração principal da semana era o concurso da mais bela bunda masculina do hospital. Os candidatos percorriam o salão e subiam ao palco, onde, de costas, para a arrelienta platéia, baixavam as calças e mostravam ostensivamente suas intimidades. Os aplausos e assobios zoavam. Repentinamente para alegria geral, uma figura magra, mas atlética, desfilou majestosamente pelo salão. Inteiramente nu, subiu ao palco e com trejeitos debochados mostrou arrogantemente a bunda à platéia, agora sem controle. Não deu outra. Armand foi o vencedor. E recebeu a disputada coroa de louros da semana. Quatro meses depois uma gravidez tubária, indesejada e mal sucedida, levou Glória ao centro cirúrgico, onde foi operada pelo residente chefe, Armand. O destino que os uniu tão inusitadamente, levou-os a um casamento apaixonado. Ao menos durante os primeiros anos. Estes se passaram rapidamente. A rotina rígida do aperfeiçoamento em Psiquiatria descortinava todo um universo de difícil abordagem, principalmente dentro da realidade infanto-juvenil de seus jovens pacientes. Uma experiência, que a seguiria pelo resto de seus dias, surgira com Gerard, um pálido adolescente de Anecy. Nascido em uma família de classe média, crescera com duas irmãs e um primo tres anos mais velho, George. Aos oito anos Gérard foi violentado pelo primo, passando a ser este um envolvimento sexual constante, com forte envolvimento emocional, chegando mesmo à dependência total. Era como se os demais componentes da família não mais existissem. E o seu universo fechou-se em torno de seu relacionamento emocional com George. Este, por sua vez, demonstrava um apetite sexual cada vez maior, e um estranho distanciamento da realidade. Na escola isolava-se, repreendido com frequência pelos professores e quase sem nenhum progresso nos estudos. Não se interessava por nada. Nem esportes, nem atividades de lazer próprias da idade. A não ser pelo primo, sempre dócil e submisso. De nada adiantaram os esforços dos orientadores especializados que o colégio lhe oferecia. Vivia incidentalmente em seu próprio e limitado mundo. Arrastando consigo o pequeno Gérard. Este o tinha como sua maior referência afetiva. Os meses passavam e a constelação familiar não se alterava. George cada vez mais enclausurado dentro de si mesmo. E então, sem qualquer aviso, a tragédia. Uma manhã Gérard ao levantar-se, preparando-se para a saída ao colégio, encontrou a porta do banheiro trancada. Hábito pouco comum naquela casa. Após muita espera, chamou o pai,que ainda dormia. Arrombada a porta, o cadáver lívido do primo, os pulsos cortados, tingindo de escarlate a água da banheira descascada. Nos meses que se seguiram, com a queda de seu jovem e iniciante mundo, Gérard desenvolveu uma doença inflamatória crônica intestinal grave, retocolite ulcerativa, que o consumiu até condições extremas. Foi apenas quando Glória iniciou seu tratamento psiquiátrico é que Gerard esboçou uma reação lenta, mas progressiva. Por anos carregou sua doença com fases de recidiva das crises intestinais. Também nunca mais manteve uma adequada definição de sua sexualidade. E foi durante todos esses anos que Glória o acompanhou dedicadamente, procurando entender aquele universo espiritual tão sofrido e terrivelmente solitário. Agindo como médica, por vezes mãe extremosa, confidente, ora cúmplice, pouco a pouco foi invadindo e interpretando os valores contidos de Gérard. Seu conturbado interior, suas necessidades mais íntimas. Procurava persistentemente um caminho que lhe permitisse iluminar aquele sombrio e carente mundo. Competência, devoção e amor foram as estratégias utilizadas por Glória, durante muito tempo. Inicialmente com resultados irrelevantes. Mas à medida que o tempo se arrastava, Gérard aos poucos passou a retribuir, como que reconhecendo todo o carinho que lhe era gratuitamente oferecido. A contínua doação física e espiritual de Glória acabou por colorir e aquecer o universo de Gérard, o que se refletiu de modo muito positivo nos resultados do tratamento clí nico da doença intestinal. A intensidade desse relacionamento com Gerard despertou-a para o reconhecimento das alegrias da maternidade. Ver crescer e desenvolver uma criança cujo perfil ainda incompleto pudesse ser alimentado pelo amor e pela convivência de cada dia. Um sentimento muito sutil de ansiedade e carência crescia dentro de Glória. O instinto da maternidade florescia e reclamava o objeto de seu desejo. Infelizmente era um sentimento não compartilhado. Solitärio. Filhos não estavam nos planos do marido. Sem outra opção, querendo preservar sua individualidade, mas também o casamento, acabou optando pela adoção. O dia em que fora a Marselha e conhecera Amelie, pequena órfã, recém-nascida, não descansou enquanto não a trouxe consigo, inaugurando uma nova etapa de sua atribulada vida. Foi um primeiro ano inesquecível. Cheio de pequenas conquistas, que só uma mãe extremosa pode avaliar. Paralelamente ao seu desenvolvimento profissional, conseguia se dedicar intensamente àquela jovem vida. E tudo parecia correr dentro da mais completa felicidade. Entretanto, tem-se a felicidade que se pode ter, não a que se quer ter. Aos poucos foi reconhecendo pequenas limitações que se avolumaram, acabando por definir na pequena Amélie uma doença cerebral degenerativa, de evolução lenta, mas inexorável. E assim iniciou-se um calvário de dedicação e amor, onde este era o maior recurso terapêutico. E Glória mergulhou de corpo e alma no empenho de propiciar uma vida normal para Amelie. Houve uma época que ela chegou a se licenciar do Hospital Universitário para montar uma clínica exclusiva para a filha, aplicando processos pedagógicos específicos para preservar e desenvolver as condições sensitivas e intelectuais da filha. E durante alguns anos foi bem sucedida. Mas ao preço de perder seu casamento. O marido não fora suficientemente forte e companheiro. No início uma tentativa de dividir responsabilidades e compromissos. Depois, deixou-a sozinha na tarefa de cuidar de Amelie. Radicalmente só. Mesmo assim, Glória cumpriu sua meta. Construiu uma vida quase feliz. Enquanto foi possível. A maturidade chegou para Glória após anos de dedicação a uma causa sem futuro. Embora com absoluta consciência do que lhes reservariam os dias, semanas e anos que se seguiriam, manteve com persistência um estado de ânimo vigoroso, propiciando a que Amelie sempre usufruisse de uma vida normal, com proteção e amor, mas sempre dentro de regras e limites atribuíveis a qualquer criança ou adolescente de sua idade. Quando as limitações se acentuaram, e os dia piores chegaram, a misericórdia divina se fez presente. Quem recebia atenção, conforto e estímulos de esperança era Glória. Amelie passou de objeto de atenção e amor, para fonte de carinho, companheirismo e inspiração para a luta de todos os dias. Depois a solidão. Absoluta. Agora, ao cair da tarde, no apartamento da Rue Moufettard, o vinho descendo encorpado, embalada por todas essas lembranças, Glória refletia que era chegada a hora de voltar para casa. Iniciar uma nova etapa de sua vida. Construir um novo caminho. Havia muito por fazer. Também a resgatar. E agora Rodolfo estava a esperá-la no Brasil. 1968 - A festa de final de ano O presidente Costa e Silva, pertencia à elite intelectual do exército, e através da ditadura militar, instituída quatro anos atrás, e sem perspectivas de retorno à democracia, dirigia um Brasil socialmente enfraquecido e amedrontado. Mas não inteiramente adormecido. Seu governo enfrentava atabalhoadamente duas tendências: uma fechando cada vez mais as portas da democracia. Outra pregando os caminhos da liberação. Nesta fase os jovens despontavam como contraponto do regime militar e reinvidicavam reformas políticas e a emancipação social. Era o despertar do poder jovem. A geração de 1968 foi uma geração de forte embasamento literário, cuja formação intelectual se fundamentou muito mais na leitura que na simples observação dos fatos. Os jovens tinham um poder de avaliação da realidade nacional, através de sua visão política própria e de uma capacidade de argumentação forjada individualmente. Dotados do perigoso dom da eloqüência, iniciaram uma revolução verbal. Que, de repente, descobriu no palavrão e na liberação sexual as formas mais completas de protesto. E com um sabor de inimaginável liberdade. O cinema e a música popular tornavam-se mais que formas de expressão. Ambos na época, norteando os rumos da liberação – o rock e o cinema novo – constituiram-se em eficientes experiências lingüísticas e de atuação política. A maioria dos jovens universitários fundamentavam seu raciocínio nas obras dos pensadores políticos de esquerda. E assim surgiram a esquerda reformista e a esquerda revolucionária. Mais tarde atenuadas pela cultura tropical e pela inocente irresponsabilidade do país, compondo a esquerda festiva. A mulher também procurava um novo caminho, revolucionando o universo feminino, expondo sua sensibilidade para experiências de vida mais fortes, mais ligadas à realidade. O uso cada vez mais frequente da pílula anticoncepcional abria os caminhos para a liberação do corpo e das emoções secularmente contidas. Nesse clima iniciou-se o ano de 1968, perigosamente inovador. E com uma festa monumental, assunto de muitos meses subseqüentes, que chegou a interferir ativamente nos rumos da intelectualidade carioca. Uma festa que marcou época, da qual muito se falou. Despertando a imaginação dos que nela não compareceram. Um grupo de intelectuais, artistas e políticos de ponta promoveram uma suntuosa e liberal festa de final de ano na mansão do casal Heloisa-Luiz Buarque de Holanda, no alto do Jardim Botânico. Mitos e fantasias envolveram durante por muito anos essa festa. Talvez muito mais fantasia que realidade. Regada por legítimo uísque escocês, e animada por efervescente troca troca de idéias e de casais, tornou estonteante a primeira festa do ano, inesquecível para as quase mil pessoas que lá compareceram. Glória foi uma delas. Acompanhada por sua prima Lívia e pelos quatro inseparáveis amigos – Tiago, Leo, Sérgio e Rodolfo. Excitados pela presença de celebridades que compunham seu universo juvenil, na música, nas artes e nas colunas sociais, deixaram-se levar pela atmosfera inebriante de álcool e sexo liberado. E deixaram os hormônios fervilhantes da juventude reger alucinadamente os prazeres do corpo e da paixão. Sem nexo, sem dono, sem identidade. O banho de mar às oito da manhã batizou a ressaca física e moral dos jovens amigos. Nunca mais na história do Rio de Janeiro houve festa igual. Nunca mais os jovens amigos participaram de uma experiência semelhante. Também nunca mais voltaram a ser os mesmos. Seu relacionamento mudaria radicalmente. Antevendo asssim os diferentes rumos que suas vidas tomariam. Era o fim da entusiasmada fase de displicente convívio universitário. E nunca mais voltaram a passar um final de ano juntos.

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