quinta-feira, 12 de julho de 2012

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 11) TEIAS DE ARANHA

Analucia. A irmã mais velha de Leo, embora nascida em Formoso, passara a maior parte de sua vida nas vizinhanças de São José do Barreiro. Próximo o bastante para não se sentir isolada da família. Longe o bastante para manter sua intimidade não devassada e manter seu estilo de vida independente. Não era bonita. Mas tinha um corpo forte e bem feito. Que muito cedo descobrira o direcionamento de sua sexualidade. Os homens lhe eram indiferentes. Durante muito tempo lutara contra a tendência ao homossexualismo. O que lhe trouxe uma insatisfação latente. Até que finalmente se rendeu à sua natureza. Aceitando sua condição e procurando ser feliz discretamente. Mantinha uma pequena pensão, que já tinha alguma fama na cidade por servir cozinha mineira de qualidade. Cozinhava bem. Mas sempre para um número reduzido de pessoas. E assim mesmo apenas nos finais de semana. Um estoque de boa cachaça artesanal fazia toda a diferença e atraía uma clientela diferenciada. Durante muito tempo vivera só. Até que Dora entrou em sua vida, Chegou na cidade para férias. Após encerrar uma etapa de sua vida. Sobre a qual nunca falava, a não ser superficialmente. E foi ficando. Até que resolveu ficar definitivamente. Com o capital que trazia, ofereceu sociedade à Analucia para montar um negócio, explorando o turismo ecológico. A região serrana, propícia aos vôos com asa-delta, com várias quedas d´água e uma represa oferecia o cenário ideal. Em breve a pousada prosperou,constituindo-se em referência regional para os adeptos do turismo ecológico. Quase naturalmente as duas sócias se aproximaram cada vez mais. A ponto, de constituírem uma família. Até bem aceita pelos moradores locais. Histórias cavernosas até não faltavam. Comentava-se que por maus tratos inflingidos à mãe, Dora tinha sido responsabilizada por sua morte. Outras já apresentavam a mãe de Dora como doente mental. Que num acesso de fúria teria ateado fogo às próprias roupas, suicidando-se. Outras ainda que a mãe teria usado a própria filha para esquivar-se do assédio sexual do marido. De qualquer modo, apesar de tudo, o comportamento de Dora nada deixava transparecer, em nenhum momento comprometendo-se por todos esses mexericos. Já em sua vida privada demonstrava um relacionamento extremamente possessivo que sufocava Analucia.Cercava-a de todas as atenções, auxiliava na administração da pousada, funcionando até como a cabeça do casal. Passou a dominar completamente Analucia. Esse relacionamento certamente melhorou consideravelmente a vida social e a condição econômica de ambas. Mas também alterou profundamente o estado de humor de Analucia, que se tornou muito dependente de Dora. Esta, cada vez mais envolvida na relação, para captar cada vez mais a atenção da parceira, frequentemente desenvolvia ataques de hipocondria. Também procurava afastá-la de qualquer convívio social que ameaçasse a proximidade das duas. Assim o tempo ia passando e ambas continuavam juntas. Como um casal. Repartindo deveres, responsabilidades e afeto. Em uma tarde quase fria, céu nublado, uma Chevrolet Caravan prateada estacionou defronte a pousada. Era inicio da semana, e como tal, não se esperava nenhum hóspede. Desceram dois homens, um deles, precocemente encanecido, nitidamente exausto, caminhava apoiado nos ombros do outro e em uma bengala de junco. O outro, alto e magro, cabelos crespos cortados curtos, óculos de grau montados em uma delicada armação de metal, avançou sorrindo timidamente. Embora não o tivesse reconhecido de imediato, aos poucos o semblante familiar, agora esboçando um sorriso discreto, fez Analucia reconhecer Leo. O irmão mais moço. Que, deixando a família para trás, traçara um rumo melhor para sua vida. Formara-se médico e exercia a profissão em Campo Grande. Não o via há muitos anos. Mas vez ou outra tinha recebido cartas curtas acompanhadas sempre por uma quantia em dinheiro. Seu coração, de início confuso, querendo estabelecer cobranças e exigir justificativas, logo em seguida enterneceu-se e abrindo os braços abraçou longa e ternamente o irmão. Que em pequeno tantas vezes tivera as fraldas trocadas por ela. Aos poucos, e com muita emoção, Analucia ficou sabendo de toda a verdade. Tudo o que se passou desde que o irmão, logo após a formatura, chegara em Campo Grande. Gradualmente os irmãos reaprenderam a se conhecer, e reavivaram o afeto entre eles. Não demorou muito e até o combalido Sérgio se integrou à família. Passo a passo toda a trama da fuga de Campo Grande foi narrada. Inclusive a participação de Lívia o que causou uma grande surpresa em Sérgio, que até o momento não soubera da presença da antiga amiga. Os dias que decorreram desde a saída da Casa de Detenção até a chegada à pensão de Analucia foram dedicados ao início de sua recuperação física e mental. Sua comoção ao reconhecer Leo foi tal, que este pensou ter sido um erro não tê-lo preparado melhor para essa revelação. Inicialmente foi acometido por um longo período de transe, ao que se sucedeu um choro convulsivo, mas restaurador. Antes de chegar à pousada, pararam uma semana em Sousas, distrito de Campinas. Para que Sérgio se recompusesse. Tranqüilidade, higiene, boa alimentação e os cuidados de Leo fizeram com que todo o desgaste físico causado pela tortura se atenuasse. Enquanto isso Leo tomava as providências para justificar sua ausência de Campo Grande. Um amigo advogado assumiu todos os encargos para gerenciar o patrimônio de Leo. Inclusive perante a sociedade médica local e os clientes, sua ausência foi justificada como se estivesse fazendo um curso de dois anos de aperfeiçoamento profissional no exterior. Feitos os necessários ajustes econômicos dentro do maior sigilo possível, dirigiram-se para a pousada de Analucia, estrategicamente situada entre Rio de Janeiro e São Paulo, em uma cidade pequena e tranqüila. Aí poderiam passar algum tempo em segurança, enquanto Sérgio se recuperasse. Procurando também notícias dos próximos passos de Alberto. Alberto voltou a si no início da tarde. A última coisa que se lembrava da noite anterior era a enfermeira de cabelos claros curtos lhe entregando uma maleta fechada. A cabeça pesada, ainda girando. Estava despido em uma cama de hospital. Sua pistola e as botas ao lado da cama. Não havia sinal do uniforme. Nem da maleta. Um equipo de soro infundia-lhe na veia um líquido não identificado. Parecia estar sofrendo uma ressaca colossal. Embora não tivesse ingerido nada na noite anterior. A noite que deveria definir todo o seu futuro. Tentou levantar-se mas a cabeça pesou mais,tudo girou e caiu na cama inconsciente. Acordou bem mais tarde, quando um enfermeiro com traços de índio substituía o soro que lhe era infundido. Tentou perguntar algo. As palavras saiam pastosas. Um gosto de tanino na boca. Estava ainda assim quando um médico desconhecido entrou. Perguntou como estava. Talvez por respeito à patente de Alberto, resolveu não perguntar nada sobre as causas que o trouxeram para ser atendido naquele estado. Apenas afiançou-lhe que tudo estava bem, e que mais algumas horas de repouso e sono o deixariam como novo. Alberto conseguiu perguntar-lhe sobre a maleta. O médico esclareceu que ninguém a abrira. Permanecia guardada na administração do hospital. Na manhã seguinte Alberto teve alta. Sua primeira atitude foi resgatar a maleta. Vestindo um uniforme novo, trazido por um de seus batedores, abandonou o hospital. No banco de trás do carro que fora apanhá-lo, abriu a maleta e constatou que os dólares ainda estavam lá. Encontrou ainda uma breve mensagem de Leo. Esclarecia que as alterações de última hora no plano de retirada de Sérgio da Casa de Detenção foram necessárias para garantir a segurança dos fugitivos. Aconselhava também que Alberto não se deixasse levar pela ira nem pela sede de vingança. Afinal apenas algumas horas de atendimento no hospital eram compensadas pelo dinheiro que havia lhe deixado. Horas que garantiriam uma vantagem sobre qualquer tentativa de iniciar a perseguição aos dois amigos. Deixava também algumas fotos de Alberto ainda inconsciente com as mãos na maleta cheia de dólares. Os negativos estavam muito bem guardados. E serviriam como prova em qualquer processo judicial aberto para julgar ou a participação do médico na fuga de Sérgio, ou seu envolvimento em qualquer atividade relacionada ao movimento subversivo. Aconselhava que Alberto deveria aproveitar esse mesmo tempo, utilizando o dinheiro para seu tratamento. Não dispunha de tanto tempo mais. Sua visão preservada ou a caçada aos fugitivos. Alberto literalmente espumava de raiva. Por ter sido apanhado de surpresa e enganado por aqueles amadores. Por ter permanecido horas no hospital, sendo tratado por embriaguez. Mais ainda por ter as mãos atadas e não poder ir atrás dos fugitivos. Tinha planejado receber o dinheiro, e prender o médico como mentor da fuga de um guerrilheiro. Mas agora isto estava fora de cogitação. Dirigiu-se à Casa de Detenção e destruiu qualquer evidência da presença de Leo. Também os registros dos de seus interrogatórios, os da prisão de Sérgio e das sessões de tortura. Enfim tudo que pudesse liga-lo aos acontecimentos dos últimos dias. Em seguida encaminhou todas as providências burocráticas que permitissem sua saída em licença especial para tratamento de saúde. Glória recebera finalmente a carta de Lívia. Depois de todo aquele tempo voltava a ter notícias da prima. Antes de deixar o Rio para iniciar sua vida em Paris, Lívia fora a única de seus antigos amigos que a procurara. Para apoiar sua decisão, embora sem concordar com ela. Desejando-lhe sucesso e felicidade. Sua prima mais querida. O último laço de família por parte de sua mãe. Jamais imaginaria que a vida pudesse ter-lhe reservado momentos de tanta angústia. Ficara surpresa quando Rodolfo tinha revelado o seu envolvimento formal com Tiago. Principalmente sua dedicação a ele após o episódio de sua prisão e a tortura. Como tinha acompanhado Tiago em sua nova vida em São Paulo, deixando tudo atrás de si. Como apesar de tudo não se amedrontara e continuara a seu modo a lutar pelos seus projetos e pelo sonho de um país melhor, com igualdade para todos. Mesmo que as instituições democráticas e os direitos humanos estivessem sufocados pela ditadura. Lívia sempre fora a mais politizada e a mais idealista do grupo. Sempre a que mais levara a sério as condições de restrição social e intelectual em que eram forçados a viver. Enquanto ela, Glória, buscara no exterior um padrão de vida melhor, com maiores oportunidades, Lívia optara por permanecer em seu país. Enfrentando a realidade, e trabalhando para indução de mudanças, que pudessem melhorar a qualidade de vida no país. Principalmente para as classes menos favorecidas. Agora, separada de sua família, perseguida e clandestinamente refugiada em Campo Grande, pedia seu auxílio para localizar Tiago e a filha em Paris. Não seria uma tarefa fácil, mas usaria de todo o seu relacionamento para encontrar o velho amigo. Seria o mínimo a fazer, por tudo quanto a prima tinha representado em sua vida. Ficara também comovida com as peças que o destino prega nos mortais. Quais caminhos ou descaminhos tiveram contribuído para que Lívia encontrasse na mesma cidade, longe de todas as suas raízes,primeiro Sérgio, depois Leo. Justamente os amigos que mais intensamente marcaram a vida universitária de Glória. Leo, o admirador sensível, que em silêncio a desejava. Pelo menos ela assim o pressentira. Sérgio, o companheiro audacioso de tantas noites de alegria inconseqüente. E justamente os três reunidos e participantes diretos daquela noite de paixão, sexo e humilhação na virada do ano novo. Uma equação com três incógnitas que definiu o rumo de três vidas. Que se dispersaram como resultado final. Após a formatura nunca mais tinha sabido deles. Embora em algumas noites se pilhasse pensando no episódio. Em sua parcela de culpa. E como poderia ter sido melhor a vida se o grupo não se dispersasse. Ou ao menos se encontrassem de quando em quando para resgatar todos os momentos felizes vividos juntos. Mas a aranha do destino, tecendo sua teia não permitiu que acontecesse dessa forma. Entretanto, agora, por outro lado, em condições totalmente diferentes e adversas, parecia que os três estariam se preparando para um novo encontro. Uma nova oportunidade para cada um talvez reverter as conseqüências de seus passos. Ao chegar em Goiânia, usando a documentação preparada por Leo, inclusive uma falsa identidade, tratou de vender o Mercury azul. Assumiu um novo visual, completando com um banho de loja os cabelos curtos agora tingidos de castanho-escuro. Discretamente instalou-se em um pequeno apartamento, organizando-se para enfrentar uma nova fase de sua vida. Dedicada mais do que nunca a tudo fazer para reencontrar o marido e a filha.

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