quinta-feira, 12 de julho de 2012

POR TRÁS DE GLÓRIA (PARTE 6) O ANO DA FÚRIA

1974 - O ano da fúria Tiago levara meses para se recuperar do interrogatório e da tortura. Mais ainda da simulação de execução ao final de seu cativeiro. O estalido do percursor na câmara vazia da pistola de cano duro e gelado ainda ficou presente muito tempo. A sonora gargalhada ressoando na escuridão da noite, o corpo e a alma, massacrados impiedosamente. Entretanto, mais que isso, a perda da dignidade e a total ausência do senso de justiça. Sua vida pública estava arrasada. Desprestigiado na universidade, impedido de dar aulas, sem qualquer cargo administrativo, nada tinha que o impulsionasse a continuar vivendo. Nada, exceto Lívia. Esta tão logo o viu livre, passou a assumir o papel que sempre deveria ter sido seu. Tomou a si o encargo de entregar a Tiago seu carinho e afeto. Tornando-se companheira e amante. Entretando devotando ódio e indignação ao regime que tanto maltratara Tiago. Mudaram-se para São Paulo, tão logo Rodolfo saíra do país. Enquanto Tiago tentava recomeçar a vida como médico no hospital Heliópolis, Lívia se firmava como defensora pública da classe operária. Logo estava plenamente envolvida com o PC do B. E, graças ao seu preparo intelectual e antecedentes de vida, uma das redatoras de panfletagem da propaganda comunista. Uma posição tão importante quanto perigosa. Toda a revolta decorrente da atual situação política, e muito mais da degradante forma de tratamento infringida a Tiago, era extravazada em incendiárias palavras, conclamando a juventude e a população a apoiar a resistência armada no Araguaia, agonizante, mas ainda a última barreira contra o regime de fôrça. Nem a gravidez recente a demovia de atuar impertinentemente. Tiago, ainda mesmo se restabelecendo, auxiliava como podia. Agora com uma filha a caminho, tinha que se acobertar ainda mais, para que a mulher nào fosse descoberta em toda a sua atividade clandestina. Mas o cerco se fechava. A polícia secreta em São Paulo ainda era mais eficiente que a do Rio. Uma noite, meses após o nascimento da filha, Tiago de plantão no hospital, Lívia atendeu ao chamado insistente da campainha do pequeno apartamento. A face magra de malares salientes, pele queimada e enrugada pelo sol do nordeste, encimada por olhos cansados, mas emitindo um sentimento de alívio revelou-se a Livia. Era como se um Tiago, envelhecido, mas ainda robusto estivesse defronte a ela. Não foi difícil advinhar a presença do sogro, há tantos anos soterrado pelo tempo. Um espectro do passado, mas com um que de ansiedade e quase esperançà. Aliviado por ter encontrado a família do filho, que havia renegado. Esperança por ser recebido. Pelo menos ouvido. Tinha acompanhado à distância a adversidade do filho. E agora, através de seus contactos com o regime militar, ciente do futuro sombrio que esperava o filho e sua reduzida família, ali estava. Alma no chão. Carregando todas as culpas do passado. Livia ouviu-o com atenção, como que preparando-o para o encontro com Tiago. O primeiro impulso foi expulsá-lo. Mas conteve-se. Quando Tiago chegou, algumas horas depois, um misto de surpresa, revolta e prostração o acometeu. Ainda fragilizado pelo passado recente, subitamente o passado distante o acometia, com todo o peso da tragédia. O pai assassino impune. Após anos de esquecimento total, invadia sua casa e sua vida. Não para implorar por perdão. Mas para resgatar o apoio de pai sempre ausente. Inexistente. Trazendo consigo a informação crítica da iminente prisão do filho e da nora. Também bilhetes aéreos e salvo-conduto para a imediata saída do país. Repentina, e para Tiago, inexplicavelmente, o rancor de toda uma vida, desapareceu. Como se o passado, por mais pesado que fosse, naquele momento nào tivesse qualquer importância. A figura do pai, envelhecido, as faces sulcadas por profundas rugas, marcas de expressão de sentimentos idos e vividos, fez com que a voz do sangue falasse mais alto. Renunciando a mágoas e a anseios de justiça, esqueceu as culpas atribuídas ao pai, e abraçou-o em prantos. Já havia passado por muito sofrimento. Era hora de deixar fluir as emoções mais reconfortadoras e acariciantes. Há muito estava carente disso. O abraço entre pai e filho durou quase uma eternidade. Depois, enquanto argumentava sobre a necessidade urgente da fuga, o velho deliciava-se com a neta, como se em um curtíssimo espaço de tempo pudesse reaver o sentimento de toda uma vida. Quase sem qualquer preparo, apenas com poucos pertences pessoais, Tiago e a filha, acompanhados pelo pai, viajaram para Campinas, já que a rota de fuga passava pelo aeroporto de Viracopos. Enquanto Lívia ficava para trás, insistindo em entregar um último texto para o partido. Quase ao amanhecer, ao chegar ao escritório, percebeu um movimento pouco comum na rua, que naquela hora deveria estar quase deserta. Destino ou sexto-sentido fizeram com que Lívia não parasse o carro. Incontinente um furgão verde-escuro iniciou uma perseguição pelas ruas da Vila Mariana. Lívia astutamente subiu pela Rua Pedro de Toledo, virou à direita na Rua Botucatu, e, antes que o furgão se apercebesse, abandonou o carro em um dos pequenos estacionamentos que servem ao Hospital São Paulo. Rapidamente correu em direção ao Pronto Socorro, como se fosse para atendimento de urgência. Não foi difícil para ela desaparecer na fervilhante atividade do hospital, mesmo naquela hora da madrugada. Um taxi a conduziu para a estação rodoviária. O combinado era encontrar-se com Tiago e a filha em Paris. Haviam marcado um encontro dali a uma semana, no café La Sorbonne, defronte da entrada principal da Sorbonne, no boulevard Saint Michel. Mas agora tudo estava perdido. Certamente os agentes dos aeroportos já deveriam ter sua descrição. Voar era impossível. Reencontrar a família só Deus saberia quando. Se é que Deus estivesse interessado no sofrimento dos que lutavam por um Brasil melhor. Trazia consigo parte do dinheiro que o sogro reservara para a fuga da família. Mas não sabia para onde ir. Ou o que fazer. Somente tinha a certeza de que a polícia estava em seu encalço. Não havia quase para onde fugir. Na própria rodoviária, em uma farmácia comprou tintura para os cabelos e uma tesoura. Cortou rente seus cabelos, tingindo-os de louros. Óculos escuros comprados em um camelô, uma jaqueta jeans com acessórios de metaleira – e uma outra mulher saía da toilete feminina. Ao acaso,escolheu uma cidade longe da eficiência policial de São Paulo e do Rio de Janeiro. Ainda consternada pelos últimos incidentes e pela perda dos que mais amava, rezava apenas que eles estivessem bem, já longe das desventuras que a pátria reservara para todos eles. Em plena estrada, no ônibus que a conduzia para a longínqua Campo Grande, procurava deseperadamente compor um plano de fuga, uma nova rota de vida. Deveria sobreviver a qualquer custo. Em nome de Tiago e da filha. Em nome também de seus ideais, mais reacendidos agora. A aeronave da Air France cruzava os céus em uma velocidade de cruzeiro segura, noite a dentro. As comissárias tinham acabado de servir o jantar. Na classe econômica estava sendo servida carne assada com batatas.Tiago não tocou em nada. Arrasado. Uma sucessão de sentimentos desordenados martelavam-lhe a cabeça. O retorno do pai depois de tantos anos. Sua intervenção oportuna, e o apoio financeiro, que lhe valera a liberdade. E um futuro com sua filha. Mas havia agora a torturante ausência de Lívia. Seu apoio e seu porto seguro depois de tantas desventuras. Estaria ela também a salvo? Teria condições de encontrá-la outra vez? Paris era todo um mundo novo.Até amedrontador. Mas os exilados que lá estavam tinham seus modos de se comunicar e se ajudarem. Longe, muito longe dalí, as luzes do vilarejo de Palestina pareciam velas luzindo fracamente na escuridão da noite,como que pedindo auxílio a uma fonte de luz que não viria nunca. À semelhança da guerrilha, que também agonizava. As forças legalistas contavam agora com auxílio internacional. Aos guerrilheiros restava apenas a esperança do impossível. Banhado em suor, Sérgio acordara após um sono entrecortado sempre pelo mesmo pesadelo. A face esguia de Chico, com seus olhos faiscantes, lhe apareciea em meio à névoa, erguendo-se do alagado em que, finalmente, seu corpo mutilado pela tortura fora deixado. Insepulto. Para ser devorado pelos urubus. Levantava-se, e, com seu jeito característico de andar, arrastando a perna recurvada, dirigia-se a ele, a camisa manchada de sangue, estendendo as mãos como a pedir ajuda. Os lábios balbuciando “... por que ?” Levantou-se e sorveu um gole de cachaça. Ultimamente estava abusando do álcool, embora este nunca chegasse a anuviar os seus sentidos e as suas lembranças. Principalmente aquelas que gostaria de enterrar. Levantou-se e saiu do casebre que lhe servia de casa. A que ponto chegara! Pela sua proximidade com o tenente Alberto, torturador venal, já não contava mais com a simpatia da população local. Até o evitavam, como a um cão sarnento. Completamente só, era procurado apenas pelo militar, mesmo assim apenas quando dele necessitava para algum trabalho sujo. A brisa da noite trouxe um momento de alívio. A noite estrelada fazia seu peito doer. Tanta beleza em tamanha imensidão. Em seu coração tanta covardia, tanta infâmia. Naquele momento bem poderia ter atirado. Salvaria o que sobrara de Chico, seu amigo e companheiro. Na pior das hipóteses teria lhe dado uma sepultura, e seus pais teriam sabido que o filho, morto por um ideal, repousava dignamente. Até isso fora incapaz de fazer. Medo e covardia. Dera as costas ao companheiro, da mesma forma que fizera a todos os desafios de sua vida. O peito lhe doía mais e mais, a respiração oprimida. No céu as estrelas continuavam a brilhar formando uma abóboda de luzes. Como que promessas iluminadas de um novo dia. De um novo amanhã. Suas últimas semanas tinham sido miseráveis demais. Lembrou-se de Alberto. Rancor e ódio invadiram-lhe a alma. Pelo militar e pelo ser abjeto que havia se tornado. Antes o universitário despreocupado e competente, buscando um rumo para sua vida. Depois, sob a ação do álcool, inconscientemente deixara escapar, além daquela que poderia iluminar todos os seus dias, também os amigos mais próximos. Não tivera coragem para assumir seus erros e tentar qualquer aproximação. Quando se deu conta, todos estavam distantes, cada qual tomando um rumo diferente. Foi nessa fase de insegurança e indefinição que encontrara abrigo na comunidade do PC do B. Daí para o movimento do Araguaia, a viagem foi curta, mesmo porque via na oportunidade o meio de se redimir dos atos cometidos. Agora tudo havia se contaminado irreversivelmente. E de novo pela sua covardia. Atingira o fundo do poço. Um poço do qual não enxergava a saída. Subitamente tomou talvez a decisão mais determinada dos útimos anos. Talvez a única. Vagarosa mas resolutamente apanhou uma pequena mochila, e sem olhar para trás, embrenhou-se na mata, noite a dentro. Desaparecia outra vez. Fugindo de si mesmo. De seu passado abominável. Leopoldo Augusto dos Anjos, o homônimo do poeta. Destino amargo, nome infeliz. Por que é que todos os seus pacientes acima dos sessenta anos conheciam aqueles malditos Versos Íntimos? Com que prazer escatológico repetiam o último verso do mórbido poema – “escarra na boca que te beija! “. E sorriam placidamente sem se dar conta de quão repugnante lhe era sequer essa imagem. Durante anos a fio suportara essa situação repetidas vêzes. Toda a sua vida. Procurara esconder-se do mundo e de quem o conhecera por duas vees. A primeira fugindo da desdita da família e sua trágica herança. A segunda vez, humilhado pela impotência. Por sua indefinição sexual. Pela única oportunidade em que provaria o gosto da masculinidade absoluta. E não conseguiu. Mais que isto, outro tomara-lhe a frente. A paixão por ele despertada, o orgasmo embriagado de Glória fora o troféu conquistado por Sérgio. Todas essas emoções carregadas de dor e humilhação, serviram para desestimulá-lo a tentar qualquer outra aproximação com o sexo oposto, durante muitos anos. Vivera daí para frente solitário. Dedicado à profissão, tendo como alternativa a pintura. Desenvolvera uma técnica especial para pintar casarios. E até se tornara notável por isso. Também fora muito bem sucedido como médico. A oftalmologia em Campo Grande, cidade que se tornara sua terra há alguns anos, deixava muito a desejar. Tinha até muitos amigos, a maioria homens. Mas não achava normal o homossexualimo masculino. Vivia, portanto, um dualismo comportamental. Sem desejar as mulheres. Sem disposição, ou seria coragem, para aceitar os homens. Jamais também assumira qualquer posicionamento político. Vivendo como se não estivesse o país mergulhado nas trevas de uma ditadura militar. Lia as notícias, mas egoisticamente não as interpretava. Não se refletiam no espelho de seu pequeno e tranquilo mundo. Neste procurava apenas o lenitivo para uma vida ainda sem propósitos definidos. O futuro nào lhe trazia qualquer preocupação, ansiedade ou projeto a realizar. Parecia viver apenas para cicatrizar as feridas do passado. Sem perceber que estas nunca cicatrizam. Sempre o cerne continua vivo. Eventualmente adormecido. Mas sempre pronto a de uma hora para outra, sob situações imprevisíveis,a reabrir, dolorosa e criticamente. Notícias esparsas do passado até lhe chegavam. Sabia que Glória estava vivendo em Paris. Rodolfo se tornara um médico competente e bastante conceituado. Tiago assumira um cargo na universidade. Lívia desaparecera no tumulto da selva urbana do Rio de Janeiro. De Sérgio nunca mais ouvira falar. Nem queria. Não tinha o menor motivo para isso. E foi assim que o ano de 1974 encontrou Leo, para sacudir seu universo particular. Refúgio artificial. Para testá-lo mais uma vez. Como sempre a vida nos testa. Reabrindo velhas feridas, montando novos cenários, quase sempre nos oferecendo outras oportunidades. De resgate ou de persistência nos mesmos erros. A estação rodoviária de Campo Grande, acanhada e suja como a maioria delas, recebeu Lívia com um clima tórrido e ensolarado. Como que a aquecê-la, após uma viagem, sem conciliar o sono. Uma mulher nos seus trinta anos, ainda atraente, cabelos claros curtos, emoldurando olhos castanhos cansados, desceu do ônibus, dirigindo-se para a cabine telefônica mais próxima. Lentamente discou um número memorizado há anos, para ser utilizado apenas em ocasiões muito especiais. De urgência absoluta. Para o qual nunca esperou ligar antes. Uma voz abafada por um sonorizador solicitou-lhe uma senha. Tagarela. Nunca entendera o porque desse codinome ridículo. Talvez porque trabalhasse no setor de redação de textos e panfletgem do partido. Alguns minutos depois, outra voz atendeu e,após rápidas perguntas,lhe deu o endereço de uma pizzaria no centro da cidade, marcando um encontro para o final da tarde. Sem ter o que fazer, perambulou sem destino e entrou em um cinema. Era um filme da série James Bond. Aliás,o primeiro sem a participação do convincente Sean Connery. O ator escolhido, um inglês de fisionomia plastificada e quase histriônica, não emplacou a série, logo dando lugar depois para outro inglês, Roger Moore, que se manteve no mesmo papel por quase dez anos. Com sucesso. No final do filme a recém-casada senhora Bond morria metralhada. Curiosamente a dor e as perdas na tela do cinema são sempre amenizadas por uma aura de romantismo. Onde o sofrimento passa a ser quase uma medalha, convincentemente aceita com estoicismo e até orgulho. Lívia mais do que ninguém entendia que na vida real não é assim. O sofrimento e as perdas são reais, cruéis e de difícil aceitação. A dor e o sofrimento não são condecorações. Muito pelo contrário, arrasam, inicialmente conduzem à depressão, e somente muito tempo depois, em algumas pessoas privilegiadas, podem funcionar como estímulo para a volta à normalidade. Ou muito mais raramente como motivação para uma nova retomada de vida. Seja para um recomeo, seja para a desforra. Que geralmente não leva a nada. Lívia adormeceu, finalmente sucumbindo pelo sofrimento e o extremo cansaço das últimas horas. Acordou sacudida levemente pelo lanterninha do cinema, solicitando-lhe gentilmente que saísse. Após lavar o rosto e colocar um batom de cor suave, sem pressa, dirigiu-se ao encontro. Naquela hora o movimento já tinha aumentado no centro de Campo Grande, e boa parte dos moradores já começava a voltar para casa. Conforme o combinado procurou encontrar uma jovem usando jeans e camiseta amarela. Não foi difícil encontrá-la fumando um Minister e tomando um chope, em uma das mesas colocadas no canto da rua. Fingindo um cumprimento alegre e casual, a desconhecida pediu outro chope para Lívia, e sorridente, como se estivessem combinando o programa da noite, disse-lhe que a escolha de Campo Grande não fora assim tão feliz. A cidade pertencia à rota de entrada e também de fuga para os ativistas do Araguaia, sendo, portanto, rigidamente vigiada pela polícia militar. Mesmo assim o partido não abandonaria um companheiro em apuros. Passou-lhe o endereço e as chaves de uma quitinete para que Lívia se alojasse temporariamente. Combinaram outro encontro para dali a tres dias, durante os quais o partido procuraria investigar o quanto a polícia sabia em relação à fuga de Lívia. Após o que lhe pareceu uma eternidade Sérgio, dirigindo um jipe de seus trinta anos, após dias de estrada, quase sempre em períodos de baixo tráfego, atingiu a entrada de Campo Grande. Após deixar Palestina, havia perambulado a esmo durante algum tempo, sempre incógnito. Chegar a Campo Grande foi um acaso desejado. Após tanto tempo isolado em lugarejos perdidos na região do Araguaia, voltar a viver em uma cidade de maiores recursos parecia-lhe uma melhor maneira de recomeçar. Um desconhecido em uma cidade grande. E como tal reiniciou sua vida. Abandonando o jipe em uma das ruas próximas à estação rodoviária, procurou uma barbearia, cortando o cabelo e fazendo a barba crescida e ruiva. Luxo que há muito não se permitia. Mais por desleixo para com sua própria aparência. Não havia nos últimos meses nada que justificasse esse tipo de cuidado. Sentindo-se mais leve, mochila a tiracolo, procurou um hotel de baixa categoria nas imediações. Ante o olhar desconfiado do recepcionista, pagou dois dias antecipadamente. Não havia elevador. Uma escada de corrimão ensebado e linóleo marrom conduziu-o ao terceiro andar. Tirou os sapatos e deixou-se cair na cama pesadamente. O colchão rangeu e as cortinas esfiapadas deixavam entrar a luz da tarde. Não percebeu nada. Dormiu pesadamente. Acordou muito mais tarde com o uivo lancinante de uma sirene. O chuveiro com marcas de ferrugem e a cortina do box de plástico rasgada não diminuiu o prazer de um longo banho. A água morna, caindo, ainda que com um fluxo desprezível, acariciava-lhe a pele tisnada pelo sol. Como se lavando a densa camada de suor e poeira, estivesse também aliviando o peso das dores da alma. Enxugando-se com uma toalha, que em outros tempos já fora branca, procurou a garrafa de cachaça para um gole restaurador. Entretanto, algo não identificado o impediu. Jogando a garrafa no lixo, vestiu uma camisa quase limpa, e saiu batendo a porta. A noite quente o acolheu quase carinhosamente. Andou alguns minutos e sentou-se em uma pizaria. Impulsivamente pediu pizza de calabreza com guaraná. No íntimo sentiu-se fazendo um anúncio promocional da Antárctica, embora não estivesse bebendo cerveja. Ali ficou mais tempo do que pretendia. Saiu apenas quando percebeu a atitude quase hostil do garçom, empilhando ruidosamente as cadeiras. Voltou ao hotel e novamente deixou-se abandonar em um sono profundo e restaurador. Conforme o combinado, três dias depois, no mesmo local, Lívia encontrou-se com o seu contacto. A face morena da mulher, contrastava com a brancura de seu sorriso. Agora mais fácil. Trazia boas notícias. A polícia de São paulo e do Rio tinham perdido completamente a pista de Lívia. Acreditavam que de algum modo, à semelhança do marido e da filha, tivesse conseguido sair do país Estavam, entretanto, procurando o pai de Tiago. Que também, felizmente nada sabia do paradeiro de Lívia. Portanto, durante algum tempo estaria a salvo. Recebeu instruções para continuar na mesma quitinete. Recebeu também uma carta de apresentação para trabalhar como linotipista em uma pequena gráfica no centro da cidade. Estava delineado o começo de sua nova vida. Modesta e sem muitas perspectivas. Mas com segurança suficiente para esperar que sua pista desaparecesse e que a polícia perdesse seu interesse nela. Aí sim, poderia talvez deixar o país, quem sabe através do Paraguai, e procurar sua família. O que a angustiava, e muito, era a absoluta impossibilidade de lhes enviar qualquer notícia. Passou a assumir uma rotina enfadonha, mas útil para manter o seu disfarce. Continuava a pintar os cabelos e usá-los bem curtos. Roupas despojadas e sem qualquer luxo. Tentava parecer um tipo local, imitando o linguajar arrastado da cidade. Frequentava sempre a mesma pizzaria próxima à rodoviária, o mesmo cinema, e,de vez em quando um restaurante de peixe. Estabeleceu uma rotina de vida discreta e paciente. Esperando a melhor oportunidade para ir ao encontro da família. Parecia que tudo estava bem e que logo, muito em breve, alcançaria seu intento. Mas o destino é uma caixa de surpresas.Sempre foi. O homem planeja. A vida executa. Sérgio levantou-se inquieto. Já há algum tempo Chico não lhe aparecia em seus pesadelos, cobrando sua atitude covarde. Nessa noite voltou a assombrá-lo. Erguendo-se do lamaçal onde o tiro lhe derrubara, o vulto alto e esguio, olhava-o penetrantemente. Não mais de um modo inquisidor, mas com um olhar curioso, atento, como se esperasse alguma ação por parte do amigo. O dedo em riste, apontava para longe, em direção indefinida. Mas certamente um gesto de comando. Não definia qual. Apenas comandava. Já haviam se transcorrido seis meses desde que Sérgio chegara a Campo Grande. Após alguns dias de readaptação à vida urbana, reaprendendo a viver no burburinho e passar despercebido nele, aos poucos foi recuperando uma pequena parte de sua auto-estima. Conseguiu um emprego como auxiliar de motorista de ambulância. E novamente iniciou o reaprendizado de como lidar com a dor e o sofrimento. Agora, entretanto, de uma maneira mais humanitária e altruísta. Até não precisava de dinheiro. Ainda guardava consigo o dinheiro sujo, obtido de suas delações para o tenente Alberto. Detestava a fonte daquela vultosa soma. Mas a utilizava agora, nào apenas para sua sobrevivência, mas também para auxiliar aqueles a quem socorria em seu trabalho diário. Enganava-se a si mesmo, crendo após tanta baixeza, poder alcançar alguma indulgência, fazendo uso misericordioso daquele dinheiro sangrento. Mas não encontrou outra forma de usá-lo. Sua vida era modesta, agora dividindo um quarto e sala com o colega que dirigia a ambulância. Não tinha planos imediatos para a vida. Apenas queria durante muito tempo viver e deixar os outros viverem. Cada qual com seu passado. Com suas culpas. Tentando ou não resgatá-las. Queria muito, mais uma vez esquecer o passado. Se é que isto era possível. Mesmo assim, reconhecia que o presente não era fácil. Pois continuava ligado à violência e ato sofrimento. Violência urbana em uma cidade grande. Em um país ainda dominado pelo jugo da ditadura militar. Cada vez mais dura na repressão ao que restava da resistência armada. Os guerrilheiros do Araguaia eram exaustivamente caçados, como se tivessem alnda força suficiente para ameaçar o governo radicalmente. Para que não restasse sequer vestígio que pudesse lembrar um dia a existência de um movimento armado. Reinvidicador da reinstalação de um estado democrático. A lição deveria ser também radical. Sequer a lembrança deveria sobreviver. E com isso a caçada aos ativistas remanescentes continuava implacavelmente. Após um monótono dia de trabalho, compondo na gráfica uma encomenda de receituários e cartões médicos, Lívia dirigiu-se quase intuitivamente à pizzaria para deixar rolar um chope gelado e relaxar. Tinha sido um dia revisitado por lembranças e saudade daquilo que tão cedo não poderia ter. Bebericar sozinha era um hábito recém-adquirido. Dava-lhe uma sensação de indiferença e autosegurança. Nesses momentos planejava seu curso de vida, sem sentir-se totalmente solitária. Já iniciava a segunda tulipa, quando repentinamente o sangue gelou-lhe nas veias. O coração batendo rapidamente e as mãos subitamente úmidas. Diante de si, andando lentamente pela rua, perfeitamente visto de sua mesa no canto da calçada, um vulto carinhosamente pinçado de um passado distante, melhor dizendo um espectro de alguém muito próximo, voltava para assombrá-la. Envelhecido, mostrando muito mais idade que a real, Sérgio passava sem dela se aperceber. Obedecendo a um impulso inexplicável, levantou-se e seguiu o antigo companheiro, reparando de longe o quanto aqueles anos todos tinham pesado para ele. Acabou chegando a um acanhado prédio de apartamentos de paredes sujas e descascadas. A janela do segundo andar logo se abriu. Lívia, ainda desconcertada, seguiu em frente. Chegando em casa,deixou-se cair na velha poltrona de braços, revestida por tecido de gorgorão que um dia tinha sido cor de terra. Aturdida por um turbilhão de pensamentos incoordenados, perguntava-se como justificar tamanha coincidência. Depois de tanto tempo, uma fase alegre e descompromissada de seu passado retornava. Com que propósito? Tinham sido dias felizes e irreverentes, onde iniciara sua formação política, julgando ser possível mudar a sociedade e o mundo. Uma fase alegre onde o sexo sem compromisso era sempre o propósito ou a justificativa para duelos intelectuais onde ideologia e estratégias de intervenção social se mesclavam inconsequentemente. Lembrava-se que fora Sérgio quem a convidara, para, junto com Glória e os outros, invadir a festa do Jardim Botânico em 1968. Após ela e os amigos se separaram e nunca mais voltaram a ser os mesmos. Logo após graduar-se em engenharia, Sérgio inexplicavelmente abandonara o grupo e desaparecera. Agora, alquebrado, mal parecendo a sombra do que fora, reaparecia. Exatamente em uma fase de sua vida, quando o passado apenas lhe traria mágoas e nenhum benefício. Estava desesperadamente tentando viver e,até com rapidez,o presente, para conseguir tentar chegar a um futuro mais digno. Com paz, segurança e o amor do qual nunca tinha antes inteiramente desfrutado. Caía a tarde e a noite quente chegou com promessas inconfessáveis. Assim sempre ocorria na jovem Campo Grande. Como auxiliar paramédico, até mesmo por vezes conduzindo ambulâncias, pouco a pouco Sérgio se descobria. Vivo. Novamente. Executando uma função social modesta. Muito diferente daquela para a qual se preparara durante todo um curso universitário. Muito aquém de todos os seus sonhos de realização profissional. Mas a única que no momento lhe devolvia uma fração de dignidade. A única forma de continuar a viver, sem ser tão massacrantemente assediado pelos pesadelos e sombras do passado. Nem mesmo assim estava livre das visões e lembranças, principalmente as de Chico. Agora mais atenuadas e,repetidamente,a lhe indicar um caminho que não conseguia desvendar. Até não havia mais tanta mágoa no olhar que insistentemente lhe dirigia. Apenas a indicação de algo por fazer. Talvez algo que resgatasse toda a sua falta de companheirismo. Desenvolvia sempre a mesma rotina de vida. Chegava bem de manhã ao hospital. Verificava o equipamento da ambulância e aguardava pelo primeiro dos muitos chamados do dia. Desde simples remoções de incapacitados, até o atendimento a emergências médicas domiciliares, sempre acompanhando as dificuldades do médico de plantão que acompanhava sua unidade assistencial. Remotamente vinha-lhe em algumas situações,a lembrança de Glória. A médica. A mulher, essa nem ousava recordar. Sequer merecia isso. O encontro de Glória com Rodolfo também deveu-se exclusivamente a um capricho do destino. Domingo à tarde. Ensolarado. Em rápida visita a Paris, na escola de medicina da Sorbonne, sem nada ter o que fazer, Rodolfo caminhava pela Rue d’École de Medicine. Era outono e as árvores se apresentavam cobertas de folhas acastanhadas. Sem destino, dobrou à direita em direção ao l’Ódeon, apreciando os cartazes promocionais dos principais filmes em exposição. Paris além de ser uma cidade verdadeiramente cinematográfica em sua beleza, acaba sendo a meca do cinema europeu. Sentiu o odor de manteiga e alho a exalar das moules gratinadas servidas pelo Leon de Bruxelles, no Boulevard Saint Germain. Mais adiante, na praça parou para admirar a rústica fachada da Église de Saint Germain-de-Près. Aquele era um de seus trajetos preferidos para caminhar em Paris. O charme da vizinhança da Sorbonne rodeada por pequenos cafés e lojas de comércio, bem diferentes e mais simples que as de famosas grifes. Voltando-se dirigiu-se ao café Deux Magots, antigo reduto dos intelectuais da nouvelle vague, e depois disso sempre um ambiente refinado, com uma frequência acima da média. Dirigiu-se às fileiras de cadeiras revestidas por palhinhas guarnecendo pequenas mesas redondas de tampo de mármore. Decidido a gozar o cair da tarde, degustando um Bordeaux. Quando de súbito, estatelado, uma sequência de lembranças assoladoras tomou-o vertiginosamente. Em uma das pequenas mesas, absorta em pensamentos indecifráveis, a figura de Glória atingiu-o devastadoramente. Com a fôrça e peso de uma ausência jamais desejada. Não a Glória juvenil e sorridente. Mas a mulher em plena maturidade, que certamente havia conhecido a felicidade, e também os desenganos que sempre sobrevem a ela. De uma beleza plácida, madura e formal. Mas os olhos retendo ainda toda a fôrça de sedução da juventude. Olhos que o fitaram intensamente. De repente o grito incontido, expresso mais pelo murmúrio de lábios. Os mesmos que anos atrás beijara sofregamente. Glória estava curtindo um momento de rara tranquilidade. Tinha deixado Amelie na casa de uma colega de escola. Uma festa de aniversário em Montparnasse. E aguardava para apanhá-la após algumas horas. Tinha estacionado seu citroen em uma vaga encontrada na Rue de Rennes bem próximo à igreja, que eventualmente frequentava. Há igrejas nas quais se entra para observar as obras de arte. Outras, efetivamente,se entra para rezar. Aquela era uma destas. Passou bem uma meia hora fazendo uma reflexão de sua vida e das opções assumidas. Esse era o seu modo de rezar. Pedindo forças e discernimento para errar menos e acertar mais. Competência e sensibilidade para atender a seus pacientes. Paciência para ouvir e entender as dores da alma. Pedia também por Amelie. Cujo futuro incerto a preocupava acima de tudo. Sabia que algum dia a perderia. Mas até então tudo faria para que sua vida fosse a mais normal possível. Rezava também para encontrar lucidez,interpretar o universo de Gerard seu paciente mais próximo. Para si mesma, não pedira nada. Saindo da igreja, e tendo ainda que matar o tempo, dirigiu-se ao café em frente. O Deux Magots era o seu preferido. Pela história que emanava de suas paredes, pelas graciosas mesas, sempre alinhadas na calçada, com vista para o movimentado Boulevard Saint Germain. Gostava de ali sentar-se e ver a vida passar. Diferentes pessoas, a passar descontraidas. De diversas nacionalidades. Todas sem a menor pressa. Respirando a tarde parisiense. Imersa em seus pensamentos, praticamente não percebeu o passado que se aproximava. Instintivamente olhou o homem alto que se plantara diante dela. Não levou mais que alguns segundos para balbuciar o nome que há muito tinha deixado para trás, porém sem nunca tê-lo esquecido. Lançou-se timidamente em seus braços, que a abraçaram. De início desajeitadamente. E aos poucos terna e carinhosamente. Como se de seus braços fluissem o encanto e o desejo de todos aqueles últimos anos de separação. De todos os seus amigos, de todos os homens de sua juventude, ali estava Rodolfo. Justamente o que talvez tivesse sido o homem de sua vida. Mas esta os separara, fazendo com que tomassem caminhos diferentes e desconhecidos. Um longo silêncio sucedeu-se ao carinhoso abraço. Olhos fixos no olhar distante. Em minutos disseram muito mais que palavras há tempo não pronunciadas. As poucos as lembranças foram retomadas. Notícias de um Brasil varrido pelos ventos da ditadura. Pela truculência da repressão militar. Pelo sacrifício de jovens idealistas. Pelas desventuras vividas pelos antigos amigos da juventude. Assim Glória soube que todos os amigos de sua juventude, os mais próximos, todos percorreram caminhos turbulentos, amargos, quase sempre sem volta. Uma onda de arrependimento por não ter conseguido ser uma amiga presente em tantos momentos difíceis a acometeu. Somou-se a isso o reconhecimento de todos os desencontros de sua vida recente. Um pranto incontido sacudiu-lhe os ombros e o espírito. Rodolfo aconchegou-a em um abraço terno e silencioso.

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