quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

A CORUJA DE MINERVA ABRE AS ASAS AO ANOITECER

A CORUJA DE MINERVA ABRE AS ASAS AO ANOITECER
(Considerações do autor sobre o estado atual da formação médica no Brasil)



Após quase quarenta anos de exercício da Medicina, em um projeto de vida acadêmica, assistindo a pacientes de todos os níveis, chego a uma fase da vida que me permite viver meu momento atual, como professor titular de uma das mais prestigiadas universidades do país, a UNICAMP, e opinar sobre os anos de ensino pelos quais passei, e também sobre o futuro sombrio que envolve a nobre arte hipocrática.

Entendo perfeitamente que os tempos mudam, e com ele os hábitos, as tendências e os costumes. Mas há algo que nunca muda – as necessidades, a ansiedade e as angústias do ser humano. E acabam sendo elas que norteiam os rumos que cada um de nós toma, em sua escalada para o destino final. O destino de cada homem, que se designa através de suas diferentes crenças.

E todas elas encerram o eterno maniqueísmo, configurando a alternância do bem e do mal, a ser considerada em cada decisão que somos obrigados a tomar. E é assim que as transformações progressiva e lentamente vão acontecendo, promovendo modificações, inicialmente imperceptíveis e desprovidas de importância. Mas pouco a pouco se estabelecendo como novas regras de compreensão e conduta. .

O comportamento do homem muda a partir da adoção dessas novas regras. Mas as necessidades e as angústias de seus semelhantes continuam as mesmas. O amor, a amizade, o direito à saúde do corpo e do espírito são aspirações inalienáveis a qualquer condição social.

As novas regras, entretanto cada vez mais privilegiam a tecnocracia, e.esta invariavelmente promove critérios consistentemente objetivos, que procuram quantificar os fatos, despindo-os radicalmente da impressão e da experiência individual, para promover a valorização das evidências formais. Evidências construídas a partir de repetições sistematizadas,

Em muitas das quais as populações de pacientes estudadas são cada vez mais rigorosamente depuradas através de critérios de inclusão extremamente rígidos. Estes critérios tornam as amostras populacionais nos diferentes estudos e ensaios clínicos, utilizados para a normatização de condutas médicas, depuradas e isentas de co-morbidades, e, portanto radicalmente diversas dos pacientes que procuram os consultórios médicos na vida real, geralmente apresentando co-morbidades, além de variantes comportamentais.

A tecnologia cada vez mais apurada e a excessiva valorização das evidências médicas formais, se por um lado promovem o desenvolvimento do conhecimento médico, por outro pode comprometer a aplicação deste na atenção primária ao paciente, geralmente um sofredor crônico.
Na evolução deste pensamento, há que se considerar como argumentos ou fatores causais: a barreira socioeconômica que afasta o paciente da melhor aplicação do conhecimento médico de ponta e também as dificuldades atualmente enfrentadas pelo relacionamento médico-paciente.

O cenário socioeconômico no Brasil revela que a minoria da população brasileira, menos do que 3 % tem acesso à medicina privada, e, consequentemente aos médicos mais experientes e melhor preparados. Há exceções, contudo a realidade brasileira é essa. Cerca de 27% da população tem sua assistência médica vinculada a convênios, seguros de saúde ou ainda os serviços universitários. E a imensa maioria da população tem como única opção de assistência médica, o serviço público, fundamentado no sistema unificado de saúde – o SUS.

Esse sistema, dependendo do estado da federação e do repasse de verbas municipais, até funciona com morosidade e desalento. Tome-se, por exemplo, o paciente que necessita ser submetido a uma prótese total de quadril e verifique-se quantos anos de espera em uma fila interminável deve ele aguardar. E mesmo assim receberá uma prótese de segunda linha, inferior às utilizadas até no próprio hospital onde próteses de qualidade superior são colocadas em pacientes particulares.

Em algumas condições como a síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA) o lobby da enfermidade é tamanho que neste caso a atuação governamental é alentadora. Mas um pais, onde a própria e fundamentalmente básica merenda escolar falta, por motivos escusos de desperdício, má administração e até desvios de recursos, tem ainda um longo caminho a trilhar. De saneamento básico e moral. Desde o golpe de 1964 os políticos atuantes se não são os mesmos, inacreditavelmente continuam a ditar as manobras políticas, que ao invés de melhorar as condições de governabilidade do pais, buscam apenas o poder, instituindo a corrupção como patrimônio nacional. É a República dos Direitos Roubados. O governo do povo, sem o povo e contra o povo.

Quando é que os medicamentos de primeira linha poderão ser utilizados pela imensa maioria da população brasileira? Enquanto nossos políticos vão se tratar, procurando recursos e cirurgias em hospitais de destaque e referência no exterior, os hospitais brasileiros estão sucateados e falidos. Quais as providências tomadas para sanear esta deprimente condição da saúde brasileira? E enquanto isso, dólares voam em cuecas nos aeroportos, e o judiciário considera legal o pagamento de horas extras a parlamentares em férias.

Resta ao paciente o conforto dos preceitos de Hipócrates , pelos quais a Medicina deveria atuar como Filha da Caridade e Mãe da Misericórdia. Palavras hoje fora de moda. A tecnocracia do conhecimento médico vem construindo uma arte médica fria e distante das angustias de cada paciente. Na ansiedade de obter resultados mais objetivos e eficientes o médico se afasta do que o paciente mais necessita além da eficácia – atenção, paciência e solidariedade.

A necessidade estressante da vida diária torna o jovem médico um operário da saúde, que ganha por produtividade, tendo que nos atender diferentes convênios, um paciente em cada quinze minutos. Como é possível em tão exíguo período de tempo conhecer o doente e reconhecer a doença que o aflige? Quando muito prescrever superficialmente. Que relacionamento médico-paciente pode ser assim estabelecido ?

E quando o paciente reconhecidamente padece de enfermidades como a fibromialgia, onde os sintomas não se relacionam a evidências orgânicas, mas sim a distúrbio do sono, angústia persistente ou humor depressivo, geralmente o médico recém-formado, ou até mesmo um outro mais experiente, simplesmente se recusa a ir mais a fundo na investigação médica, repassando o paciente para outro tipo de atendimento. Geralmente também inconclusiva e ineficiente.

O paciente idoso, que na terceira idade, pelas próprias perdas físicas, sociais e emocionais, torna-se mais sensível e carente, já na própria família sofre a discriminação afetiva e social. Pelas próprias condições da vida atual em nossa sociedade os mais novos não mais encontram tempo para os mais velhos. Exatamente na fase da vida em que se tornam mais sensíveis. E também mais sábios. Para viver melhor relevam a solidão e o desinteresse dos familiares.

E não raro procuram o médico. E em 30% dos pacientes com queixas crônicas, o melhor diagnóstico acaba sendo angústia, solidão e desamor. E também na grande maioria das vezes o médico, que ganha por produtividade se desinteressa por esse tipo de paciente, que novamente é deixado sem assistência adequada.


A contrapartida vem aceleradamente. O médico cada vez mais perde o seu prestígio, deixando de ser a referência maior do paciente. Este cada vez mais nem mesmo se lembra do nome do médico que o atendeu na consulta anterior. Exatamente porque falhou a relação médico-paciente. O médico nem chegou a impressionar o paciente. Não lhe tocou o corpo, e muito menos a alma!

Outra conseqüência flagrante e imediata é a progressiva escalada da medicina alternativa, chamada atualmente de medicina complementar. Nunca antes os procedimentos alternativos, tidos como medicinais, ganharam tanto espaço. E em todas as categorias sociais, embora sejam ainda os descamisados os que mais se valham deles. Exatamente pela falta de um acesso mais democrático às medicações. Mas também motivados pela freqüente falta de atenção do médico, não tão bem preparado.

E ainda assim as autoridades competentes ainda continuam abrindo novas escolas de medicina neste país. No Brasil que apresenta o maior número de escolas médicas em atividade, entretanto sem competência ou condições adequadas para o exercício do ensino médico. Cada vez mais faltam professores com capacitação profissional. Os antigos se aposentam e as condições para que os mais novos façam seus cursos de pós-graduação se afunilam progressivamente.

O que está sendo ensinado para os alunos de nossas escolas médicas? Informação ou formação médica? Não há professores em número suficiente para formar profissionais competentes e bem formados. Para os cursos de graduação estão sendo recrutados nas escolas mais recentes médicos sem formação humanística e universitária, que passam a exercer o cargo de monitores ou professores sem titulação adequada. Ensinar é uma arte. Que exige o conhecimento aprofundado, prática assistencial e de ensino. E acima de tudo bom senso para semear o essencial para o aprendizado médico humanístico.

O mesmo se estende à prática médica no campo da especialização. Apenas 35% dos graduados em Medicina conseguem uma vaga nos diferentes cursos de residência, submetendo-se para tanto a um concurso tão rigoroso como o próprio vestibular. Fato que produz um efeito dominó irônico e preocupante. Os excedentes que não conseguiram uma vaga na residência médica, passam a atender diretamente nos postos de saúde municipal e em diferentes serviços de pronto-atendimento. Tentando cuidar dos menos favorecidos, ou até mesmo de parentes nossos, e ocupando exatamente posições que deveriam ser exercidas por profissionais mais experientes.

Hegel, o filósofo, afirmando que a sabedoria da deusa romana Minerva, Palas Atenas para os gregos,se disseminava pelo vôo de sua coruja mensageira, que voava apenas ao anoitecer noite, certamente se referia à liberdade de pensamento daqueles que simplesmente passam a enunciar seus conceitos e opiniões com a certeza da maturidade.

Talvez há alguns anos atrás não tivesse a clareza e o desejo de passar à frente essas certezas.
Hoje, após todos esses anos, procuro sentar-me perante meu paciente, e antes de procurar a doença que o aflige, tento conhecer um pouco de sua vida e de suas ansiedades. O diagnóstico virá mais cedo ou mais tarde. A resolução, entretanto, dependerá de muito mais do que a simples informação médica. Isto continuo ensinando aos alunos que por mim passam. E também a cada paciente. -

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