sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

A Dor como instrumento de punição divina.

A dor sempre acompanhou o homem, desde a sua criação, sendo talvez sua mais fiel companheira. E sempre em todas as épocas dotada de uma carga de simbolismo inerente à história e cultura de cada povo.

Frequentemente a introdução da dor e do sofrimento no destino do Homem esteve ligada ao conceito de punição divina.

Na Mitologia Grega, Prometeu, um semi-deus, por ter roubado o fogo dos céus para entregá-lo aos homens, experimentou a cólera divina de Zeus, no suplício da dor crônica: acorrentado a um penhasco, tinha o fígado continuamente devorado por um abutre, dia a dia, pois o órgão se recompunha diariamente tornando o suplício contínuo.



Já no Gênesis após infringirem os mandamentos divinos Adão e Eva, expulsos do paraíso, aprenderam que a vida deve ser conduzida através de experiências contraditórias como esforço físico, dor e lágrimas. Também com sentimentos negativos como ciúme, violência e sangue – que, acometendo Caim, levou-o ao assassinato do irmão Abel. Decorrente disto a mentira, o remorso e o exílio. O Homem voltando à dor da solidão.

De Caim ao dilúvio, a dor do próprio Criador ao reconhecer a corrupção de sua obra e a necessidade de um novo reinício. A dor maior do Pai, sacrificando seus filhos nas águas revoltas, para que novamente os homens se desenvolvessem com a alma mais purificada e os instintos mais evoluídos, compondo uma criação que deveria ser perfeita.

Os filhos do patriarca sobrevivente Noé repovoaram a terra, e muito depois, num assomo de inacreditável arrogância, decidiram construir uma torre que chegasse aos céus. Novamente a mão do Criador baixou sobre eles, trazendo como veículo de outra lição a dor da surpresa e da decepção de não conseguirem mais se comunicar entre si. E a anarquia gerada pela criação de diferentes idiomas, aqueles que haviam decidido chegar ao céus por sua própria obra, imitando o criador, abandonaram a torre de Babel, dispersaram-se, e com humildade recém-aprendida, iniciaram um longo e penoso recomeço.

A relação do próprio Deus com sua obra sempre foi cercada de exigências de ambas as partes.

A aliança do Homem com Deus sempre foi testada pela angústia e inquietude da alma humana. Temor e receio do desconhecido, gerando o conceito de uma divindade única e suprema, severa e inquisitiva, onipotente e temida.

E em um momento de imperfeição quase humana, o Criador cobra de Abraão, o patriarca, a mesma dor, exigindo o sacrifício de seu filho Isaac, como demonstração de obediência e fé. E assim, também nisso o patriarca cegamente obedeceria ao seu Deus,como testemunho de inabalável crença. Mas no último momento, o anjo enviado pelo próprio Deus, impediria o sacrifício supremo, reconhecendo no patriarca o líder insofismável do povo do Deus Único.


E outra vez a dor - agora do oportunismo e ódio - separa os irmãos Esaú e Jacó. Este, em seu desterro aprende por sua vez a dor da decepção e do amor. Jacó, ameaçado de morte pelo irmão Esaú, enviado pela mãe Rebecca, viajou para a casa de Labão, parente distante. Lá, apaixonou-se por Rachel, filha de Labão, e para casar-se com ela trabalhou, como era então hábito, como pastor durante sete anos.

Mas na noite de núpcias, Labão vestiu Lia, irmã mais velha de Raquel com as roupas nupciais, e entregou-a a Jacó. No dia seguinte, quando Jacó descobriu a trama insidiosa, o matrimônio já tinha sido consumado. Amargando a dor da decepção e do amor não que lhe abrasava a alma, a partir de então trabalhou outros sete anos,para conseguir o direito de enfim se casar com Rachel, sua verdadeira amada. Junto com cada filha, Labão enviou também duas criadas Bila e Zilpa,que posteriormente também, segundo os hábitos vigentes, se tornaram esposas de Jacó.

A dor da decepção e a grandeza deste amor inspiraram Luis de Camões a compor um soneto magistral:

Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel serrana bela,
Mas não servia ao pai, servia a ela,
Que a ela só por prêmio pretendia.

Os dias na esperança de um só dia
Passava, contentando-se com vê-la:
Porém o pai usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe deu a Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Assim lhe era negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,

Começou a servir outros sete anos,
Dizendo: Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida.


Enquanto Lia deu à luz quatro filhos em sucessão rápida, Rachel, estéril, não podendo conceber por muitos anos, ofereceu sua criada Bila para o marido. Esta união resultou em dois filhos. Lia que também desejou mais crianças, ofereceu a criada Zilpa à Jacó, e mais dois filhos vieram. Finalmente, depois que Lia pariu outros dois filhos e uma filha, a própria Rachel gerou dois filhos.

Rachel sempre foi a esposa preferida de Jacó, que a amava muito e a ela dedicava a maior parte de seu tempo livre. Raramente Jacó visitava a tenda de Lia. Rachel morreu de complicações de parto, mas antes chamou o menino Benoni (filho de minha dor).

José, o décimo primeiro filho de Jacó, nascido de Raquel, citado no livro do Génesis, no Antigo Testamento, foi o fundador da Tribo de José, constituída, por sua vez, pelas tribos de de Efraim e Manassés, seus filhos.

José sentiu na alma a dor da inveja de seus irmãos, que o percebiam ser o filho predileto do pai. Os irmãos o venderam como escravo a mercadores egípcios, e informaram ao pai sua morte, causando este fato dor insana ao pai. Mas por seus próprios méritos, José caiu nas graças do vizir do faraó, Potifar, tornando-se seu braço direito. Mas, por resistir com dignidade ao assédio sexual da mulher de Potifar, foi por ela acusado e lançado na prisão.

Um dia, o Faraó teve um sonho profético no qual sete vacas magras comiam sete vacas gordas e mesmo assim continuavam magras. Para explicar seu sonho, ele convocou todos os sacerdotes do Egito para decifra-lo. Nenhum desses conseguiu, então o copeiro-chefe se lembrou do escravo na prisão, José, que tinha decifrado seu sonho e indicou-o ao Faraó que, chamando-o, ouviu a interpretação do sonho, pela o Egito passaria por sete anos de fartura e outros sete de seca.

Com isso, tornou-se José o conselheiro do faraó e grande da corte. Mais tarde, perdoando seus irmãos, chamou-os para com ele viverem no Egito, iniciando um novo ciclo de vida e, posteriormente servidão para o povo de Israel.

Na história do povo do Deus Único, sempre se alternaram fases de exultação e dor. Estas sempre relacionadas a épocas onde o povo, na concepção divina, se fez merecedor de medidas punitivas.

Moisés (1592 a.C. - 1472 a.C.) foi o primeiro grande patriarca, guia político e espiritual do povo hebreu. E talvez o que mais tenha sido penalizado com sofrimentos que lhe sobrecarregaram a alma inquieta e cheia de dúvidas.

Os descendentes de José e seus irmãos com o passar do tempo cresceram em número e passaram a ser escravizados. Mesmo assim, começaram a se reproduzir tão rapidamente, que passaram a se constituir em uma ameaça potencial contra a autoridade do faraó. Este então deu ordens de que toda a criança do sexo masculino deveria ser sacrificada.

Mais tarde, percebe-se que a dor causada pelo faraó ao povo hebreu recairia igualmente sobre os próprios egípcios, já que uma das dez pragas que determinaram a anuência do faraó em liberar os hebreus do cativeiro, foi igualmente a morte de todos os primogênitos egípcios.

Para livrar o filho do decreto mortal do faraó, a mãe de Moisés, colocou o recém nascido em uma cesta de papiro, deixada a flutuar entre os juncos na margem do Rio Nilo, próximo onde se banhava a filha do faraó Seth. Thermuthis, a princesa egípcia encontrou-o e o adotou como filho.
Astuciosamente,contudo, sua mãe natural fez-se designada como sua ama de leite pela princesa egípcia, o que permitiu que Moisés secretamente fosse instruído na religião e cultura hebraica.

Moisés foi criado no palácio real como príncipe dos egípcios, sendo preparado e também instruído em toda a sabedoria da civilização mais adiantada daquele tempo. Foi educado na escrita e nas literatura do seu tempo, aprendendo também administração e a justiça.

O seu treinamento foi projetado para prepará-lo para um alto cargo, ou até suceder ao trono do Egito. Viveu na corte de faraó, com toda a pompa e grandeza cultura egípcia.

Aos 40 anos, Moisés se indignou com a crueldade de um feitor egípcio com um escravo hebreu, e acidentalmente matou-o. Temendo pelas conseqüências da rígida justiçado faraó, fugiu do Egito, levando a vida como pastor.

Outros 40 anos se passaram e Moisés, atendendo ao comando de Deus ( que a ele se apresentara como um arbusto que ardia sem se consumir ), retornou ao Egito para resgatar os hebreus da escravidão.

Moisés e seu irmão Arão apresentaram-se ao faraó solicitando que o povo hebreu fosse seja libertadodoforte jugo egípcio. Perante a insistente recusa do faraó, segundo Moisés, a mão divina se abateu sobre o Egito, enviando sucessivamente dez pragas que assolaram o país e acabaram por sacrificar os primogênitos egípcios, inclusive o herdeiro do trono.
Embora atualmente não exista nenhuma comprovação arqueológica da ocorrência das dez pragas do Egito, alguns historiadores, no entanto, propuseram a hipótese de que as pragas se referem a catástrofes ecológicas, motivadas principalmente pela explosão do vulcão Santorini.

Desolado pela perda do filho, dor maior que poderia afligir sua alma, o faraó finalmente concede a liberdade aos hebreus.
O êxodo se inicia e uma multidão de 600 mil hebreus deixam o Egito com seus pertences e rebanhos. O faraó, entretanto, com a alma atormentada, e, movido pelo desejo de vingança, envia um exército para massacrar os retirantes.

Mas novamente a mão divina se abate sobre o faraó, e, pela vontade de Deus e a força da fé de Moisés,as águas do Mar Vermelho se abrem dando passagem aos hebreus fugitivos. Mas após a travessia dos retirantes através o leito seco do mar, as grandes muralhas de água, contidas pelo deus hebreu, abatem-se sobre o exército do faraó, destroçando-o.

Moisés liderando seu povo, em busca de uma nova terra, chegou ao sopé do Monte Horebe, na Península do Sinai. Lá acamparam e Moisés e seu irmão Arão subiram ao cume do monte onde recebeu a inspiração divina para redigir as Tábuas da Lei, contendo os dez mandamentos. Mas ao final dessa revelação, ao descer o monte, percebeu que o povo descrente havia se entregado à idolatria, reverenciando outros deuses.

Com a alma profundamente alterada pela dor da ingratidão e descrença do povo que o deus Único havia libertado do jugo egípcio, Moisés coléricamente atira ao chão as Tábuas da Lei, despedaçando-as.

Como castigo divino o povo hebreu suporta a dor do desterro por 40 anos, vagando pelo deserto. Nesse período Moisés escreve o Livro do Êxodo, com o objetivo de manter vivo na memória do povo hebreu o feito da fundação de si mesmo como nação: a saída do Egito e a consequente libertação da escravidão.

Através de sua fuga e a busca da terra prometida, o povo hebreu adquire, através do sofrimento físico, a consciência de sua unidade étnica, filosófica, cultural e religiosa.

Moisés também escreve os outros quatro livros do Torá, codificando as leis mosaicas em 450 AC, que passariam a reger secularmente o povo hebreu. Apesar de tudo, Moisés sofreu, com a alma resignadamente em pedaços, a dor imerecida de jamais poder conhecer a terra prometida.

Nesse caminho pelas raízes bíblicas da história da humanidade intuitivamente as dores da alma se mostraram ligadas sempre ao relacionamento do Homem com um Deus de justiça, interpretado como capaz de aplicar medidas punitivas.

Entretanto mais que a punição divina, esses sentimentos, melhor considerados desajustes, neuroses ou desequilíbrios íntimos, coletivos ou individuais, devem ser objeto de tratamento ou oportunidade de reparação.

Esses processos psíquicos, como dores da alma, não devem merecer a punição divina ou a crítica impiedosa da intransigência religiosa. Devem ser melhor interpretados no reconhecimento de que podem e necessitam ser tratados com responsabilidade e compaixão.

A partir do Novo Testamento a imagem de Deus se modifica, e embora ainda intervindo nos momentos de grande dor, mostra-se progressivamente transformado em uma divindade plena de amor .

Este amor se cristaliza no momento em que surge o Cristo como figura redentora da humanidade, através de seu próprio sacrifício em prol do resgate do destino espiritual do homem.

Sua trajetória e de seus discípulos deu início à mais bem sucedida revolução social e espiritual de todos os tempos: o cristianismo,que propiciou uma ascenção progressiva dos padrões espirituais do homem moderno.

Entretanto, como que abrindo caminho para essa revolução, baseada na crença e no subjetivismo dos caminhos e atividades atribuídas a Jesus, vem a figura de José, talvez o exemplo mais concreto da supremacia da crença sobre o racionalismo.

José é um personagem célebre do Novo Testamento bíblico, marido da mãe de Jesus Cristo. Segundo a tradição cristã, nasceu em Belém na Judéia, no século I a.C., pertencendo à tribo de Judá e na linhagem direta do rei Davi.

José não era homem de letras ou de ciências, sequer da religião. Era um homem do interior, da pequena vila de Nazaré, tão pequena que nunca foi mencionada em todo o Primeiro Testamento.

Carpinteiro por profissão foi designado por Deus para se casar com a jovem Maria, mãe de Jesus, que era uma das consagradas do Templo de Jerusalém. Mas, sem que nunca tivessem tido relações íntimas, José um dia encontrou Maria grávida.

Na época a lei bíblica vigente prescrevia como punição o apedrejamento das adúlteras. Mas José, homem justo e generoso, resolveu contemporizar, e mais tarde discretamente abandonar aquela que no futuro seria sua esposa. E aconteceu que enquanto José dormia, apareceu-lhe, em sonho, um anjo que pediu-lhe que não temesse em desposar a jovem, dizendo “ - pois o que nela foi gerado é do Espírito Santo”.

Dor indescritível na alma causada pela dúvida. Mas esta acaba sendo vencida pela inabalável fé no sonho interpretado como mensagem divina.

E assim José casa-se com Maria, assumindo publica e oficialmente a paternidade de Jesus. O lugar que José ocupa no Novo Testamento é bastante discreto e totalmente como coadjuvante do filho.

O silêncio era a sua essência. Mas também o trabalho com as mãos e a madeira, suficientes para alimentar a sagrada família.

José teria se casado jovem e só foi prometido a Maria quando já era viúvo. José teria tido, no primeiro casamento, duas filhas e quatro filhos sendo o caçula chamado Tiago, que Jesus considerava como irmão e com ele teria passado sua infancia e parte de sua adolescência. E Maria achou o menor Tiago na casa de seu pai e este estava triste pela perda de sua mãe e Maria o consolou e o criou. Assim Maria é às vezes chamada de mãe de Tiago. Estaria explicado assim a grande polêmica do "irmão" Tiago que Jesus pediu para tomar conta de sua mãe Maria

Embora nada se saiba de efetivo em relação à sua obra, há controvérsias que afirmam ter sido José em sua juventude um ativista empenhado na libertação da Judéia do jugo romano, tendo sido aprisionado até algumas vezes.

Especula-se ainda sua relaçãocomos zelotes, grupo de ativistas políticos que procurava incitar o povo da Judéia a rebelar-se contra o Império Romano e expulsar os romanos pela força das armas, que conduziu à Primeira Rebelião Judaica.

São José na carpintaria
( Georges de la Tour, 1593- 1632, Paris, Museu do Louvre )


Com o passar dos anos José, já em idade avançada, nunca deixou de trabalhar, mantendo-se vigoroso e com boa saúde. Não se sabe a data aproximada de sua morte, mas ela é presumida como anterior ao início da vida pública de Jesus.

A pergunta que fica é: qual o tipo de influência exercida por uma figura paterna como essa nos caminhos e decisões de Jesus? Quantas dúvidas enfrentadas por José, solucionadas ou não pela crença cega nas mensagens recebidas por seus sonhos, teriam sido transmitidas durante o convívio próximo e diário com o filho na carpintaria?

Nenhum comentário:

Postar um comentário